terça-feira, 9 de julho de 2013

Uma História Geométrica em Duas Partes

por Saul Matos Martins




N. A. - Esta história dá sequência a Uma Notícia Geométrica, de João Ventura

Primeiro, a surra. Depois, uma operação em delírio que o deixou mutilado. Depois, a perda do emprego
lamento imenso meu caro mas como compreenderá a firma não pode manter nos seus quadros alguém como o senhor
a que dera anos de vida. Logo a seguir, a mulher — linda quadrada quase perfeita, sempre adornada com levíssimos arrebiques nos vértices — que saiu porta fora levando consigo os pequenos, todos os pequenos, até o triste retangulozinho que era o mais novo e de quem ela nunca gostara precisamente por ser retângulo,
não posso Alfredo não posso mesmo desculpa vou para casa da minha mãe é a vergonha de estares transformado nisso com que cara encaro as amigas, não posso

quinta-feira, 4 de julho de 2013

A Ideia Peregrina

por Jorge Candeias





Como sou um tipo ocupado, e um grande infiel, nunca na vida iria de peregrino a Fátima. Mas a verdade é que não custa nada cobrir todas as possibilidades. Que isto nunca se sabe. De modo que tive uma ideia peregrina, vesti-a de batina, arranjei-lhe farnel, dei-lhe uns cobres e pu-la a caminho.
Não chegou lá. Conheceu uma brasileira vuluptuosa ali para os lados da Ota e acabou, bêbada e sem cheta mas divertidíssima, numa pensão de Rio Maior.
Nada a fazer. Eu sou assim. Até as minhas ideias peregrinas são umas pecadoras do catano.

segunda-feira, 17 de junho de 2013

Hambrelín ou A Tabuada das Ratazanas

por José Eduardo Lopes



NE: Este conto foi inspirado pelos contos da série das Ratazanas e por uma célebre lenda alemã.

Depois de séculos a transmitir às crias pequenas todos os ardis e táticas de sobrevivência da espécie, as ratazanas pensaram que já estava na hora de progredirem, de ampliarem os seus conhecimentos e aquilo que conservariam para transmitir aos descendentes. Começaram por aprender a ler, não os textos em palavra impressa, desenhada, mas textos em braile, que convinham mais à hipersensibilidade dos seus focinhos táteis. Logo que isso se tornou comum entre as ratazanas, estas ambicionaram aprender a contar e, mais do que isso, a multiplicar os números.

quarta-feira, 22 de maio de 2013

A Metamorfose das Ratazanas

por Vanessa Glória Guedes




NA: Este conto foi inspirado pelos contos A Crise das Ratazanas, de Miguel Hernâni Guimarães, e A Fome das Ratazanas, de Jorge Candeias.

O ministro abriu a boca e dela saíram ratazanas. A sala susteve a respiração. Todos menos a Dona Alice, que era pitosga e despassarada e, ao ver aquelas bolinhas de pelo preto soltou um guincho de deleite e correu para elas gritando:
— Ai que lindos! Ai que queridos, os gatuxos! Mas quem foi que os deixou aqui?!
E recolheu as ratazanas, uma a uma, aconchegando-as ao peito e fazendo-lhes festinhas. Depois, levou-as dali.
E foi assim que, uma vez mais, um ministro foi salvo pela miopia e distração do povo.

sexta-feira, 17 de maio de 2013

A Truta

por José Eduardo Lopes






Estamos no pequeno jardim da casa entretidos com a minúscula horta quando somos saudados por um vizinho com as fuças encaixadas nas ripas da vedação de madeira. Como estão? Dia bonito de sol, não é? Temos de aproveitar o bom tempo!, e outras banalidades de semelhante calibre. Eu e a minha patroa suspeitamos do motivo dessa simpatia. O vizinho — como todos os vizinhos, aliás — já foi visitar a truta violácea que mora ao fim da rua — todos menos nós — e aquela paragem diante da nossa casa não tem outro propósito senão o de nos fazer lembrar a nossa cruenta desumanidade. A truta violácea está doente, a truta violácea está com pena dela mesma e sofre de melancolia, a truta violácea até sonha acordada com regatos de águas cristalinas e lagos de montanha. Fica o dia todo deitada numa cadeira de espaldar no terraço para poder contemplar o rio escuro que corre junto à casa e lambe com as suas águas os pilares do cais envelhecido da arruinada fábrica de conservas. Está deitada sob o céu ao abrigo dum chapéu de sol, e lastima-se, e arfa com aflição como um peixe fora de água.

segunda-feira, 13 de maio de 2013

A Fome das Ratazanas

por Jorge Candeias



NA: Este conto foi inspirado pelo conto A Crise das Ratazanas, de Miguel Hernâni Guimarães.

O ministro abriu a boca e dela saíram ratazanas. Eram cinco, muito pretas, escanzeladas, pelo e osso atrás de uns olhinhos a brilhar de calculismo. Distribuíram-se pela mesa, em formação quase militar, cobrindo todos os ângulos, e depois imobilizaram-se. Os focinhos rosados é que não paravam quietos, esforçando-se por captar só as ratazanas saberiam dizer o quê.

quarta-feira, 8 de maio de 2013

Pogrom

por José Eduardo Lopes





Na digna República dos Bananas, a concórdia era geral nos estratos superiores da sociedade. Os Bananas elegiam os seus representantes para o Senado, mais um chefe de Estado que se incumbia das missões mais solenes e decorativas. Havia deles para fingir que trabalhavam e que eram parte do aparelho produtivo da nação, e havia outros que dispensavam esse teatro supérfluo e existiam apenas para encher os seus ventres esbranquiçados e mercadejar cargos e influências. O único senão para a excelência da República dos Bananas, é que eles não estavam sozinhos. Os Bananas exploravam despudoradamente o trabalho servil do Cocos; eram estes quem verdadeiramente produzia a riqueza do país, quem lavrava os campos e mourejava nas minas e fábricas.

terça-feira, 30 de abril de 2013

A Crise das Ratazanas

por Miguel Hernâni Guimarães





O ministro abriu a boca e dela saíram ratazanas. Eram cinco, muito pretas, lustrosas, gordas como penicos. O ministro, esse, ainda estrebuchou um bocado, atrapalhando-se com a gravata, mas acabou por cair redondo no chão.
A comoção foi geral. A oposição exigiu eleições antecipadas. O país não podia estar condenado a um governo cujos ministros se dissolviam em ratazanas, alegou.

quinta-feira, 25 de abril de 2013

Mau Feitio

por José Eduardo Lopes




Norb Bron (os subalternos tinham sempre estes nomes parvos), funcionário de Manutenção, foi chamado ao terraço do prédio.
— Eis o que precisamos de ti — explicou-lhe um dos trinta e quatro supervisores que tinha acima de si — o vento despregou parcialmente os painéis de propaganda e tens de os pregar de novo antes que se soltem por completo. Dirige-te à Secção 21 no sexagésimo oitavo piso e requisita um martelo inteligente para teres êxito na incumbência.

terça-feira, 16 de abril de 2013

À Porta de Tua Casa

por Jorge Candeias




À porta de tua casa há uma corda que sobe até ao infinito. Viveste com ela toda a vida. Sempre curioso, sempre intrigado, mas nunca o suficiente. Até ao dia em que é o suficiente, o dia em que decides subi-la para ver onde vai dar, o dia em que resolves que se não o fizeres já acabarás por envelhecer demasiado para tentares a ascensão. E deitas mãos à obra. E sobes. E sobes. E sobes. E continuas a subir até que, ao fim de muito tempo, se te acaba a corda, inesperadamente.
É esse o preciso momento em que cais. Lá em baixo, está o infinito à tua espera. À porta de tua casa.

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

Para Cada Verdade as suas Consequências

por Miguel Hernâni Guimarães


A noite é escura e cheia de terrores, pensa Mário. Depois sorri, um sorriso triste, lembrando-se do livro em que lera essa frase, e dos outros, de todos os seus velhos e amados livros, estantes deles, perdidos agora para sempre no incêndio de Lisboa. Este continua a lavrar, algures para norte, enchendo o céu noturno de fumo acre que de vez em quando é empurrado pelo vento para o nível das ruas, dificultando a respiração, mas já está demasiado distante para que se continue a ouvir o crepitar das chamas. Agora o que crepita são as armas automáticas que continuam a discutir à sua esquerda e à sua direita, nos labirintos arruinados de Alfama e do Bairro Alto, enquanto as tropas da União e a guerrilha da Frente Latina Revolucionária trocam derradeiros argumentos a três e quatro vezes a velocidade do som, sob a forma de chumbo revestido de aço. De vez em quando, uma violenta explosão sacode o solo sob os seus pés, como um relâmpago de pedra, e passados alguns segundos chega-lhe aos ouvidos um trovejar longínquo. Embora continue a passar por ali um drone ou outro, os bombardeamentos da NATO concentram-se agora mais a noroeste, para lá de Benfica. Contudo, se a sua eficácia for comparável à dos que destruíram os velhos bairros de Lisboa, a guerrilha pouco terá a temer. Bastar-lhe-á recolher-se, calar as armas, fundir-se com a população de onde brotou, esperar que o vendaval passe e rezar, se para aí estiver inclinada, por chegar viva ao dealbar dos dias calmos, e depois reatar a luta por entre os escombros.