por Miguel Hernâni Guimarães
A noite é escura e cheia de terrores, pensa
Mário. Depois sorri, um sorriso triste, lembrando-se do livro em que lera essa
frase, e dos outros, de todos os seus velhos e amados livros, estantes deles, perdidos
agora para sempre no incêndio de Lisboa. Este continua a lavrar, algures para
norte, enchendo o céu noturno de fumo acre que de vez em quando é empurrado
pelo vento para o nível das ruas, dificultando a respiração, mas já está
demasiado distante para que se continue a ouvir o crepitar das chamas. Agora o
que crepita são as armas automáticas que continuam a discutir à sua esquerda e
à sua direita, nos labirintos arruinados de Alfama e do Bairro Alto, enquanto
as tropas da União e a guerrilha da Frente Latina Revolucionária trocam
derradeiros argumentos a três e quatro vezes a velocidade do som, sob a forma
de chumbo revestido de aço. De vez em quando, uma violenta explosão sacode o
solo sob os seus pés, como um relâmpago de pedra, e passados alguns segundos
chega-lhe aos ouvidos um trovejar longínquo. Embora continue a passar por ali
um drone ou outro, os bombardeamentos da NATO concentram-se agora mais a
noroeste, para lá de Benfica. Contudo, se a sua eficácia for comparável à dos
que destruíram os velhos bairros de Lisboa, a guerrilha pouco terá a temer.
Bastar-lhe-á recolher-se, calar as armas, fundir-se com a população de onde
brotou, esperar que o vendaval passe e rezar, se para aí estiver inclinada, por
chegar viva ao dealbar dos dias calmos, e depois reatar a luta por entre os
escombros.