sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

Para Cada Verdade as suas Consequências

por Miguel Hernâni Guimarães


A noite é escura e cheia de terrores, pensa Mário. Depois sorri, um sorriso triste, lembrando-se do livro em que lera essa frase, e dos outros, de todos os seus velhos e amados livros, estantes deles, perdidos agora para sempre no incêndio de Lisboa. Este continua a lavrar, algures para norte, enchendo o céu noturno de fumo acre que de vez em quando é empurrado pelo vento para o nível das ruas, dificultando a respiração, mas já está demasiado distante para que se continue a ouvir o crepitar das chamas. Agora o que crepita são as armas automáticas que continuam a discutir à sua esquerda e à sua direita, nos labirintos arruinados de Alfama e do Bairro Alto, enquanto as tropas da União e a guerrilha da Frente Latina Revolucionária trocam derradeiros argumentos a três e quatro vezes a velocidade do som, sob a forma de chumbo revestido de aço. De vez em quando, uma violenta explosão sacode o solo sob os seus pés, como um relâmpago de pedra, e passados alguns segundos chega-lhe aos ouvidos um trovejar longínquo. Embora continue a passar por ali um drone ou outro, os bombardeamentos da NATO concentram-se agora mais a noroeste, para lá de Benfica. Contudo, se a sua eficácia for comparável à dos que destruíram os velhos bairros de Lisboa, a guerrilha pouco terá a temer. Bastar-lhe-á recolher-se, calar as armas, fundir-se com a população de onde brotou, esperar que o vendaval passe e rezar, se para aí estiver inclinada, por chegar viva ao dealbar dos dias calmos, e depois reatar a luta por entre os escombros.

Mário não quer saber. Já teve a sua dose de combate. Está farto. Viu morrer demasiada gente, demasiadas aspirações, demasiados sonhos. Tem a mochila cheia de conservas recuperadas de uma das ruínas do Chiado e o cantil reabastecido com a água que caíra na breve chuvada da véspera, e é só isso que lhe importa. Para quê continuar a luta, pensa, se já está tudo destruído e não resta nada por que valha a pena lutar? Para quê continuar o combate, reflete, cerrando os dentes de raiva, se a gatunagem se raspou toda assim que a coisa aqueceu a sério para os lados dela e já não lhe conseguimos espetar nos cornos os tiros que merece? Que se lixe, conclui, e não pela primeira vez.
E avança por entre escombros, percorrendo um caminho já antes percorrido, que só em parte segue o reticulado das ruas da baixa pombalina. Na Lisboa do presente não existem caminhos simples entre um ponto e outro. Tudo é uma confusão de montes de entulho e crateras, de paredes periclitantes que parecem prestes a ruir com um sopro e profundos poços que mergulham nas Lisboas de tempos pretéritos, de irreconhecíveis vestígios calcinados de uma prosperidade desaparecida e de cadáveres meio roídos por cães forçados a regressar ao comportamento atávico dos seus longínquos antepassados e por gatos e ratazanas que nunca chegaram a abandoná-lo e agora competem, desconfiados uns dos outros, pela deglutição dos anteriores donos e senhores daquela urbe caída. O fedor da morte paira por todo o lado, denso, pesado, repugnante, misturado com os dejetos da população que ainda resta na cidade e que escorrem agora principalmente à superfície, vindos das zonas altas. Mas Mário já se habituou. Há meses que Lisboa está assim, transformada em criatura moribunda e coberta de necrófagos.
Aliás, pensa, há anos que Portugal inteiro está assim, transformado em criatura moribunda e coberta de abutres.
Sim, Mário já se habituou. Um homem habitua-se a tudo, mesmo ao que pouco antes julgava inconcebível. Mas apesar se ter habituado aos miasmas da cidade moribunda prefere acoitar-se não muito longe do rio, de onde a aragem marítima traz outros aromas, menos desagradáveis, menos impuros, carregados de humidade em vez de fumo, do cheiro a sal e não a excremento, trocando essa pequena réstia de um bem-estar possível pela insegurança de se encontrar numa zona central, sujeita aos ataques que podem vir do rio.
A insegurança, de resto, não é grande; já não há grandes possibilidades de ataques vindos do rio. Os edifícios que rodeiam o Terreiro do Paço estão todos em ruínas, esventrados pelos bombardeamentos que a FLR desencadeou quando esteve prestes a conquistar a capital, imediatamente antes da intervenção em força da aviação da NATO, e esta, por seu turno, a primeira coisa que fez foi destruir o resto, começando por arrasar a estação do Cais do Sodré a fim de dificultar o desembarque que estava iminente, tratando em seguida de afundar a quase totalidade da frota improvisada dos guerrilheiros, ao mesmo tempo que enchia a beira-rio de danos colaterais. No Mar da Palha, desde então patrulhado dia e noite por um par de navios de guerra que Mário não sabe identificar, a navegação está interdita e já nenhum barco acosta aos cais de Lisboa. A Outra Banda, essa, parece estar pacificada, segundo o palavreado oficial. E mesmo que entre a propaganda da NATO e a realidade haja a distância que Mário suspeita haver, mesmo que a Margem Sul esteja longe da paz, a guerrilha parece ter perdido a capacidade de disparar rockets sobre a capital, já para não falar da artilharia de longo alcance, que nunca possuiu. Quem tem o dinheiro tem as armas. É das tais verdades imutáveis de todas as revoluções, de todos os golpes, de todas as guerras. Por isso, à parte as escaramuças que continuam a ter lugar nos escombros dos bairros populares, à parte os disparos esporádicos, mais ou menos distantes, há por ali uma espécie de calma. A suficiente para Mário se descontrair um pouco, endireitar ligeiramente as costas vergadas ao peso da mochila, desencostar-se de muros e paredes, saltar sobre pequenas crateras sem grande receio de uma bala poder arranjar maneira de lhe penetrar no crânio sem ser convidada. Não que seja impossível, mas é improvável e ele tem disso plena consciência. Além de que ninguém aguenta viver com medo vinte e quatro horas sobre vinte e quatro.
Apesar de tudo, quando chega ao fim da rua para e encosta-se ao que resta da esquina. Há um grande monte de entulho a obstruir parcialmente a visão da Praça do Comércio, mas esta mostra-se quase tão desafogada como sempre foi, apesar do pedestal que suporta D. José e seu cavalo estar crivado de balas e um engraçadinho qualquer ter pintado um grande
FOR SALE
a amarelo no pescoço do cavalo. À esquerda, um segundo monte de entulho em que ainda se reconhecem algumas das formas neoclássicas do arco da Rua Augusta forma uma barricada que fecha aquela rua. Mário sabe que logo atrás se abre uma grande cratera onde se acumula água tão fétida que o ar em seu redor é irrespirável, mas também sabe que por vezes há atiradores furtivos escondidos nos lugares mais improváveis, atiradores que tendem a disparar primeiro e só depois ir investigar se o morto pertence às tropas da NATO, se é guerrilheiro ou não passa de um simples civil maltrapilho a tentar sobreviver como lhe for possível. É portanto com prudência que se agacha e passa longos minutos a observar os limites da praça em busca de qualquer movimento, à escuta de qualquer som, sustendo a respiração. O nariz, cronicamente entupido, incomoda-o. Sente um globo viscoso de muco a escorregar-lhe pela narina esquerda, mas não o limpa, agora não, agora o silêncio e a quietude são de ouro.
Não deteta nada. Só os gritos das gaivotas e um esvoaçar ocasional de pombos. Que consiga ver entre as sombras, nem um gato percorre a praça. Há até um momento em que mesmo os tiros vindos de Alfama se calam e o Terreiro do Paço fica como que em suspenso, à escuta, na expectativa do que se seguirá. E o que se segue é um cão a ladrar para o lado da 24 de Julho, uma confusão de rosnidos e o reatar dos tiros, já não só em Alfama, mas também no Bairro e mais para norte, talvez na Mouraria, talvez na zona do Rossio. Do Terreiro não lhe chega nem sinal de vida humana, ou daquilo que passa por vida humana nos dias que correm. Era mesmo isso que Mário queria ouvir.
Descola-se da parede, trepa aos tropeços a pilha de entulho, escorrega do outro lado e enfia-se o mais depressa possível num buraco irregular onde em tempos houvera uma arcada. Daí em diante, o caminho é por dentro da ala poente, agora transformada em caverna escura e traiçoeira, repleta de armadilhas para os incautos e de cacos do velho fausto pombalino. Algures, ali dentro, antes de tudo ser desfeito, havia ministérios, hotéis, restaurantes, memórias de um luxo imperial que perdurara muito mais do que o império que lhe servira de mote. Agora, pouco resta. O que não foi destruído foi saqueado por soldados em busca de lembranças, por habitantes em busca de vingança, pelo acaso em busca de si próprio.
Mas Mário conhece o caminho, sabe onde está cada armadilha, cada buraco, cada perigo iminente, e chega sem incidentes ao local que escolhera como abrigo: um sítio ainda com teto, no primeiro andar, com algumas paredes parcialmente derrubadas mas substituídas pelo monte de entulho em que, depois de décadas de ameaças, o torreão poente finalmente se transformara. São várias salas num estado razoável, embora a ausência de vidros nas janelas se faça sentir no vento que por elas sopra. Quando lá chegara, encontrara-as cheias de secretárias e outro material de escritório. Só mais tarde se apercebera de que aquilo fora uma dependência qualquer do Ministério das Finanças, e nesse momento rira-se muito. Oh, a ironia! Mas a vontade de rir não perdurara. Passara-lhe assim que se instalara numa espécie de rotina.
Um homem habitua-se a tudo, mesmo à ironia.
Agora é com uma certa sensação de alívio que chega àquelas salas. Há algo de lar naquilo, uma certa forma de permanência, alguma estabilidade no meio da borrasca. Livra-se da mochila, pousa-a numa das secretárias que usa como mesa e começa a esvaziá-la. Conservas de atum, de sardinha, de anchovas, de feijão, refeições em lata, boiões de salsichas, barras de chocolate, pacotes de bolachas. E água, cantis cheios dela. Espreguiça-se, libertando as costas da tensão acumulada. Depois escancara a boca num gigantesco bocejo. Lá fora, as rajadas distantes recrudescem de intensidade, parecem aproximar-se. Apura o ouvido e dirige-se com prudência a uma das janelas. Não. Nada. É só o vento que mudou de direção e agora sopra de nascente, aproximando de si tudo o que se passa em Alfama. Para junto do varandim e senta-se no chão, sobre cacos de vidro, encostando a cara às barras de ferro forjado. Naquela noite Lisboa está às escuras, como quase todas as noites, salvo um clarão aqui e ali, nos pontos em que os incêndios vão consumindo o que ainda resta da cidade. A pacificada margem sul, por outro lado, parece não o estar lá muito. Mário vê várias explosões de pequena intensidade na zona do Montijo. Será na base aérea, ou mais para trás, na cidade? Apetece-lhe levantar-se, debruçar-se para ver melhor, mas sabe que seria arriscado e de nada serviria; àquela distância, estar de pé ou sentado é rigorosamente a mesma coisa.
É então que ouve o som.
Uma espécie de lamúria compassada, vinda de trás de si, denunciando que algo de vivo se encontra nas imediações. A princípio não percebe bem de que se trata. Cão? Homem? Talvez até gato de voz estranha? Um? Mais que um? Pelo sim, pelo não, desembainha a faca de mato antes de se pôr de cócoras. A escassa luminosidade da noite, lá fora, é ainda assim suficiente para tornar o interior mais negro, e Mário tem de esperar que os olhos voltem a ajustar-se-lhe ao negrume. Depois avança, sempre de cócoras, com uma lentidão de felino na caça, evitando pisar as pedras e bocados de estuque que juncam o chão, a fim de não fazer barulho. Imobiliza-se quando a lamúria se interrompe, o que acontece algumas vezes, e volta a avançar quando recomeça. Chega ao corredor. O som vem da direita e, parece-lhe, de baixo, e por esta altura já eliminou algumas das hipóteses que começou por admitir. Não é gato nenhum. Resta ainda uma cada vez mais vaga hipótese de ser cão, mas decididamente não é nenhum outro animal. E os cães não costumam ganir assim.
É gente, então. Redobra a prudência. Avança pelo corredor, pé ante pé, de faca em riste na extremidade do braço esticado. Começa a imaginar coisas. Cada zona de sombra mais densa lhe parece conter uma arma apontada para si. Não sejas cobarde, pensa, enraivecido de si próprio. Que tens aí pendurado? Um par de tomates ou dois balões sem ar? Endireita-se um pouco mais e dá outro passo. Um bocado de estuque quebra-se sob o seu peso com um ténue crac, e Mário estaca. No mesmo momento, a ladainha interrompe-se.
Fica. Muito. Imóvel.
Sem. Sequer. Respirar.
É com um suspiro silencioso que ouve a ladainha a reatar. Retoma o avanço, um pé, depois outro. Sente agudamente a falta da pistola, que escondera quando decidira desertar. Uma faca, mesmo que de mato, passa por apetrecho indispensável à sobrevivência na selva de entulho em que transformaram Lisboa e não atrai atenções indesejadas; uma Glock 19 nem tanto. Mas agora, ali, preferiria sentir nas mãos o peso familiar da Glock, preferiria poder apontá-la para as sombras e saber que teria alguma hipótese de ripostar se algo de letal delas saltasse. Para com isso, resmunga mentalmente consigo próprio. E dá mais um passo, e logo outro.
Acaba por chegar ao cruzamento de dois corredores e aí volta a parar, à escuta. Não percebe bem se os murmúrios vêm de algures à sua frente, se do corredor da esquerda. Está negro como breu nesse corredor, o qual termina em mais um monte de entulho, sem saída para o exterior. Mas mesmo que a tivesse pouca luz haveria, visto que as janelas daquele lado do edifício dão para um pátio interior de horizontes limitados, não para a vastidão de uma praça aberta para o rio. Talvez por isso, Mário decide seguir em frente, mas ao passar o corredor a voz decresce subitamente de volume. Não é por ali. Volta para trás.
Descobre a origem da voz pouco depois. É um homenzinho, sentado a um canto, praticamente debaixo de uma janela através da qual quase nenhuma claridade se derrama. Abraça qualquer coisa que Mário não consegue distinguir e oscila visivelmente enquanto vai balbuciando palavras quase incompreensíveis. Só apurando o ouvido Mário consegue compreender algumas delas, e só depois de compreender as primeiras compreende as outras, como se aquelas fossem uma chave para estas, uma chave capaz de destrancar um qualquer dicionário temático interno à sua memória de longo prazo. O que o homenzinho murmura é qualquer coisa sobre orçamentos, folhas de execução, recapitalizações e juros. Algo sobre taxas e impostos.
Será um antigo funcionário que se resolveu refugiar no que lhe resta de familiaridade, numa cidade que de súbito se tornou estranha e letal?
Mário sente-se acometido de uma estranha mistura de sentimentos. Ódio e pena. Raiva e comiseração. Aquele homem, naquele lugar, naquele momento, forma um quadro patético, inofensivo, um quadro de desespero. Uma vítima. Um inocente. Mas se percorreu aqueles corredores quando ainda estavam limpos de pó de pedra e bocados de caliça é tudo menos inocente. Não é vítima, é algoz.
Ou as duas coisas em simultâneo.
Permanece longo tempo à porta, a observar o outro sem ser notado. Depois toma uma decisão. Regressa à sua zona. Há uma sala, com um grande buraco de granada na parede, que Mário tem vindo a usar como depósito de lixo. Está cheia de latas vazias, entre outros desperdícios. É para lá que Mário se dirige. Recolhe quatro latas, enrola-as em trapos para não chocalharem e leva-as consigo para o corredor que vai dar à sala de onde ainda lhe chega a ladainha do outro. Com o máximo cuidado para não fazer qualquer barulho, dispõe as latas no chão por forma a tornar quase impossível que alguém por elas passe sem tropeçar nalguma. Se o outro tentar sair dali ainda de noite, acordá-lo-á de certeza. Se só sair depois de romper o dia verá as latas e saberá que tem a companhia de alguém, mas Mário planeia já estar a pé muito antes dessa hora.
Contudo, acaba por passar o resto da noite em branco. Ainda se deita no seu cantinho, mas não demora a levantar-se. Não consegue pregar olho. A natureza e identidade do homenzinho não lhe saem da cabeça, receia alertá-lo para a sua presença no caso de ressonar, e as palavras que conseguiu entender naquela monótona lengalenga trazem-lhe à memória tempos idos, tempos mortos para todo o sempre, que o mergulham num turbilhão de saudades. Pensa no que perdeu, os livros, a casa, o emprego, a sua querida vida estável e previsível, pensa nos amigos que nunca mais viu e nem sequer sabe se ainda estarão vivos ou se terão acabado debaixo de alguma ruína, no estômago de algum animal ou vítimas da mira de animais de outro tipo, pensa até na família, que perdera antes mesmo de rebentar o conflito. Pensa e desespera, enquanto os minutos se arrastam rumo à alvorada. A tristeza é uma companheira que conhece bem, e é na sua companhia que espera o surgimento da primeira claridade no céu de Lisboa.
Quando esta chega, vai encontrá-lo transformado em sombra. Recolhera-se ao corredor mais escuro que passa pela porta da sala onde o outro ressona baixinho. Antes de aí se instalar numa pedra encostada à parede, ficara algum tempo a observá-lo, ou ao vulto indistinto que o homem formava, tentando decidir o que fazer com ele mas sem conseguir chegar a qualquer conclusão. Acabara por encolher os ombros, por deixar esse problema para depois, por decidir que o melhor é esperar que a alvorada decida por si. E agora ali está, a ver essa mesma alvorada a clarear lentamente a janela que se abre lá ao fundo, na outra ponta do corredor, estendendo tentáculos de uma luz translúcida edifício dentro, criando uma sombra aqui, apagando outra ali. O dia, parece-lhe, vai nascendo bonito. A nesga de céu que dali consegue ver está azul. Noutros tempos, teria acolhido essa mudança no estado do tempo com alegria, teria pensado em passear pela luz branca de Lisboa, desfrutar da frescura da luz radiante da primavera. Mas agora as suas ideias são outras e aquela pincelada de cor só lhe traz preocupação. Agora consegue apenas pensar em como o fim da chuva tornará problemática a tarefa de arranjar água minimamente potável, e não é capaz de afastar essa ideia da mente mesmo depois de fazer lembrar a si próprio que uma nesga de céu não é o céu inteiro e que nada indica que aquele bocadinho de azul seja mais que um breve interregno nos dias de céu carregado.
De onde está vê parte da sala onde o outro ainda respira cadenciadamente. A ombreira da porta, um bocado da parede do fundo, uma velha secretária derrubada, estantes partidas. A princípio, estas diferentes superfícies são apenas sombras com diferentes graus de profundidade mas, à medida que a luz vai inundando o mundo lá fora, essas sombras vão também ganhando solidez, vão-se concretizando. E Mário vai perdendo a paciência. Por fim levanta-se, dirige-se à porta, pé ante pé, espreita lá para dentro. Debaixo da janela, o homenzinho dorme, aninhado numa bola e virado para a parede. Protege-se do frio do chão, repara agora Mário, com um bocado ainda indistinto de tecido. Talvez um casaco, talvez uma manta ou uma toalha. O cabelo é grisalho e longo, ou então está coberto de poeira e caliça. Ou as duas coisas. Os pés estão calçados apenas com umas meias escuras e esburacadas, mas parece a Mário que o homem tem a cabeça apoiada num par de sapatos. Não consegue distinguir de que tipo ou em que estado poderão estar, se bem que, ajuizando pelo resto da roupa, este não deva ser famoso. O homem está sujo e maltrapilho, coberto de pó, nódoas e farrapos. Mário coça a cabeleira, também ela suja de caliça, longa e grisalha. Passa a mão pela barba, em tudo semelhante ao cabelo. Que faço eu com este gajo? Avança até perto dele, sem fazer barulho. Procura descobrir-lhe as mãos, ver se nelas se encontra algo que o possa pôr em perigo. Nas suas, a faca desembainhada está pronta para tudo. Vai encontrar uma das do homenzinho pousada sobre uma pasta preta, com aquilo que talvez seja folhas em muito mau estado a transbordar lá de dentro, e a outra aconchegada sob o queixo, o qual está coberto por uma longa barba, também ela grisalha. Mário examina-lhe o corpo, ainda em silêncio, sem lhe tocar. Se possui alguma arma está bem oculta e é pequena. Mas não lhe parece. O ar de desamparo do homenzinho é total. Parece não passar de um civil absoluto, daqueles incapazes de pegar numa arma mesmo que a sua vida disso dependa, até porque se pegassem não saberiam o que fazer com ela. Um civil que sobreviveu até àquele momento sem saber como, um pouco por sorte, um pouco por conseguir sair do caminho dos guerreiros, refugiar-se nos buracos mais improváveis, não constituir ameaça para ninguém.
Mário endireita-se. Ainda de faca na mão, encosta uma bota às costas do outro. Empurra.
— Eh! Tu! — diz, não muito alto mas o suficiente. — Acorda!
O outro desperta com um sobressalto de coelho assustado. Vira para ele olhos esbugalhados no mais absoluto dos terrores, sob um par de sobrancelhas farfalhudas. As mãos saltam-lhe para a cara, mas antes de a cobrirem Mário ainda tem tempo de ver longas olheiras profundamente vincadas e uma testa sulcada por uma escadaria de rugas. Há naquela cara qualquer coisa que lhe mexe com a memória, mas Mário não consegue descortinar o que poderá ser. O homem encolhe-se a um canto, tentando fundir-se com a parede, balbuciando lamúrias quase inaudíveis. É uma atitude de presa, não de predador. Nenhuma mão salta para uma arma escondida, nenhum olhar furtivo procura avaliar a situação, calcular vantagens e desvantagens, congeminar planos de fuga ou vitória. Ali só há pavor. Às narinas de Mário, insensibilizadas por meses dos piores fedores, chega um bafo acre a urina.
— Calma — diz, baixando a faca. Ainda é cedo para guardá-la. — Não te quero fazer mal.
Nenhuma reação. É como se o outro nem o tivesse ouvido.
Fica mais um bocado imóvel. Acaba por guardar a faca. Pensa ir-se embora, deixar aquele farrapo ali, ignorá-lo. Mas quando se apresta para passar da ideia à prática, uma explosão longínqua, logo seguida por três ou quatro tiros dispersos, mais próximos, faz-lhe lembrar que os combates prosseguem. Que lá fora ainda se morre nas ruínas de Lisboa. Que sobreviver implica não facilitar, nunca facilitar, e nunca, nunca, aceitar as aparências como factos incontestáveis.
— Olha lá, pá — diz ao outro — sabes que vou ter de te revistar, não sabes? Põe-te em pé e encosta as mãos à parede.
Nada. Nada, a não ser um recrudescimento das lamúrias. Mário começa a perder a paciência. Coça a cabeça. Assim não vou lá. Vislumbra um olho do outro a espreitar por entre dois dedos e isso decide-o. Volta a erguer a faca. Baixa-se. Berra-lhe:
— De pé, foda-se! Encostado à parede. Já!
O homenzinho enfim obedece, metendo os pés pelas mãos, com movimentos incertos, movimentos de bêbado. As lamúrias são agora um choramingar contínuo, no qual aquilo que talvez sejam palavras se atropela numa catadupa sem sentido. Segurando a faca com a mão direita, a postos contra qualquer surpresa, Mário apalpa o outro com a esquerda, primeiro nos lugares óbvios, depois nos menos óbvios. Nada encontra, a não ser uma humidade recente entre pernas que o enche de repugnância. Recua. Enfia a faca no cinto.
— Pronto — diz-lhe. — Já está. Não doeu, pois não?
Como Mário já esperava, o outro não responde e regressa à posição anterior num piscar de olhos, aninhado ao canto, enrolado sobre si próprio, a cobrir o rosto com as mãos. A ladainha vai-se reduzindo a pouco e pouco e um ou dois minutos mais tarde já está outra vez transformada num murmúrio completamente ininteligível. Mário observa o homenzinho com sentimentos novos. O ódio e (sim, admite de uma vez) o medo sumiram-se por completo. A pena, essa, ainda lá está mas, perante tão completo retrato de cobardia, é agora dominada por um crescente desprezo. Isso, contudo, pouco lhe importa; quando a sobrevivência é tudo, os estados de alma não passam de curiosidades, e Mário pensa furiosamente no que fazer àquele farrapo, considerando todas as alternativas. O tipo é perigoso, conclui, por mais doido de medo que esteja. Porque pode atrair atenções indesejadas sobre a sua toca, especialmente se souber que é isso que aquele lugar significa para si. Porque pode comprometê-lo de uma variedade de formas que nem vale a pena escalpelizar. E não lhe apetece mudar-se. Está obviamente pronto a fazê-lo, se tiver de ser, pois numa cidade em guerra um teto sobre a cabeça é sempre coisa provisória e sujeita a desaparecer num piscar de olhos, mas não lhe apetece, não por causa de um tipinho daqueles. Não só pelo sítio, mas pelas coisas que foi trazendo até ali, as pequenas possibilidades de conforto, as mantas, as provisões.
E a falta de uma alternativa preparada de antemão. Sim, sobretudo isso.
Acaba por encolher os ombros. Tem algum tempo. Pode pelo menos tentar saber qualquer coisa sobre o homenzinho e como chegou ali. E porquê. E se há mais como ele na zona, prestes a vir bater-lhe à porta.
Uma explosão próxima sacode o edifício, arrancando às paredes mais uma chuva de caliça e fazendo erguer-se no ar uma gigantesca nuvem de pó. Mário atira-se para o chão, num reflexo, no mesmo momento em que sente o soco da onda de choque perpassar-lhe pelo corpo. O homenzinho solta um enorme grito de pânico mas não sai do mesmo sítio. Mário olha em volta, de súbito atento a cada cambiante de luz. Gostaria de conseguir ouvir alguma coisa além do zunido do excesso de decibéis, mas nem vale a pena pensar nisso; já foi mais que uma vez roçado pelas bombas e já sabe que ficará meio surdo durante uns dias. Soa uma segunda explosão, mais longínqua. Sabe-o não pela atenuação do som, mas pela forma menos violenta como o chão treme. Olha o homenzinho de relance. Continua em posição fetal, mas afastou as mãos da cara para abraçar com elas os joelhos. Os olhos esbugalham-se-lhe em movimentos de pardal, saltitando para todo o lado ao mesmo tempo. A boca não para, mas Mário nada ouve. Levanta-se, assoma-se com prudência à janela. Dali não se vê nada, nem mesmo uma coluna de fumo. Terá sido do outro lado do edifício. Corre para fora da sala, sem se importar com o que o outro possa fazer, pontapeia as latas fazendo-as partir à desfilada com um estrondo de que só ouve rumores e atravessa os corredores até um ponto onde uma janela que alguém fechara com tijolos e argamassa é perfurada por dois buracos abertos por alguma espécie de munição de grande calibre. Espreita por um deles e vê uma grande coluna de fumo erguer-se por trás da ala nascente e ser empurrada pelo vento para norte, e uma segunda, mais fina, como que a nascer um pouco mais à esquerda. Percorre com o olho o céu predominantemente azul, mas não consegue ver nele nada de invulgar. É provável que tenha sido um drone a provocar aquilo mas, se foi, ou está oculto atrás do fumo ou já foi engolido pelo horizonte arruinado. Mário não ouve tiros e não lhe parece que isso se deva à surdez. A cidade, ou pelo menos aquela zona da cidade, está mesmo calma.
Devem ter tentado acabar com a resistência em Alfama, conclui. Se a malta foi esperta, acoitou-se a tempo.
Continua a vigiar, a passar os olhos pelo céu, pelos edifícios que se veem dali, pelo rio, tentando perceber em que pé, ao certo, estão as coisas, enquanto a ironia de ter mandado a guerrilha às urtigas mas continuar a pensar nela como “a malta” o faz sorrir para dentro. Continua sem nada ver e sem nada ouvir. A cidade, que minutos antes reverberava com os ecos dos disparos de armas automáticas que já mal se notam de tão costumeiros, está agora num silêncio de expetativa. Algures, certamente, tropas percorrem as ruas para tomar novas posições. Algures, decerto, atiradores furtivos bem escondidos vigiam-nas pelas miras telescópicas, esperando, esperando, enquanto com o outro olho perscrutam o céu não vá dar-se o caso de eles próprios estarem a ser vigiados por algum olho eletrónico tecnologicamente avançado, o que teria como consequência uma esperança de vida assustadoramente curta. Mas vista dali, é como se Lisboa não passasse de um retrato, de uma fotografia de desolação, sem vida nem movimento, sob a luz prometedora de uma manhã de primavera.
Tanto melhor.
Afasta-se do buraco, encosta-se um momento à parede a passar as mãos pela cara, pelas orelhas, pelo pescoço. Não há humidades, nada lhe dói, à parte a impressão de excesso de pressão nos ouvidos que ainda não lhe passou. Olha as mãos, cobertas de pó, um pouco suadas, mas sem quaisquer manchas vermelhas. Não está ferido. A explosão não lhe rebentou com nenhum tímpano. Perfeito. Fica ali um momento, a pensar na vida, e depressa o curso das suas ideias se vira para o problema que tem em mãos, para o homenzinho que lhe veio cair ao colo sem que saiba como nem porquê. Lembra-se da sua expressão aterrada, dos olhos esbugalhados, e um estranho incómodo o assalta ao recordar essa imagem. A cara do outro causa-lhe uma incómoda sensação de dêjá vu, como se já tivesse deparado com ela em algum lado. Meses antes. Talvez anos. Há ali, parece-lhe, uma recordação esbatida qualquer. Ou talvez não. Talvez seja falsa. Talvez não passe de impressão. Mário esforça-se por ligar a ténue lembrança a alguma espécie de contexto, mas é interrompido por um tiro distante, seguido por uma rajada, também ela distante. Eis que os sons de Lisboa regressam à normalidade. Volta a espreitar pelo buraco. Tudo como dantes, à parte as colunas de fumo estarem um pouco mais rarefeitas.
Toma uma decisão quase sem se dar conta. Levanta-se, sacode a poeira num reflexo inútil, dirige-se à sala onde deixara as provisões na noite anterior, pega em duas barras de chocolate e volta para a sala onde encontrara o homenzinho. Este ainda lá se encontra, como imaginara; mantém-se enrolado sobre si próprio no mesmo canto, se bem que agora esteja calado. Mário para à porta, sem fazer barulho, a observar. O outro recolhe os papéis que, com a comoção, deixara derramar para fora da pasta. Lentamente. Deliberadamente. Examinando-os um a um e enfiando-os entre os restantes como se ali houvesse alguma ordem que seja imperativo manter.
Este tipo é doido, pensa Mário. Mas isso não o torna menos perigoso.
Recua e depois regressa, fazendo um barulho exagerado. O outro deverá estar tão surdo como ele, talvez mais, e não o quer sobressaltar. Tem de o tratar como trataria um animal selvagem tímido e assustadiço, com segurança, confiança, mas sem gestos nem atitudes que possam ser vistos como ameaças. Entra na sala descontraído e encontra o outro já a olhar para si, como pretendia, se bem que esse olhar não seja franco e esteja muito longe de ser aberto. Uma mão nodosa continua a cobrir-lhe a maior parte do rosto. É como se o homem se servisse da mão como alguma espécie de esconderijo. Mário finge não reparar. Chega mesmo a dirigir-lhe um fantasma de um sorriso enquanto lhe acena com as barras de chocolate. Senta-se no chão, ainda a alguma distância do outro. Encosta-se a uma parede. Abre uma das barras, dá-lhe uma dentada. Mastiga devagar, saboreando a doçura, o sabor de outras terras mais pacíficas e, com tudo o que tem acontecido nesta nos últimos meses, talvez já mais ricas. Deita um relance ao homenzinho, vê como os seus olhos reluzem de avidez. São dois profundos poços de fome. Quase lhe dão vertigens.
— Queres? — pergunta, erguendo a barra.
Espera uma resposta que não vem. Encolhe os ombros e atira-lhe a barra na mesma com um gesto descontraído.
— Toma lá.
E abre a outra barra, que morde e mastiga, fechando os olhos. Volta a abri-los e vê o outro, encolhido, a olhá-lo fixamente de olhos esbugalhados. A barra continua no lugar onde caiu.
— Estás à espera de quê, pá? — pergunta-lhe. — Come lá isso. — Uma pausa. Nenhuma reação. — Não? OK, tu lá sabes. — Faz um movimento para se levantar, para ir recuperar a barra, mas é nesse momento que o outro se decide, dá um salto trôpego, agarra-a e regressa num piscar de olhos ao seu canto, onde se volta a encolher, agora de costas voltadas para Mário. Não come o chocolate; devora-o, rasgando o pacote com os dentes numa sofreguidão de quem não come há um mês.
Passam assim alguns minutos. Dois homens numa sala enevoada de pó, que uma levíssima aragem empurra para fora pela janela escancarada, a fazer a mais básica das coisas que estar vivo exige, enquanto lá fora ondas de morte rebentam na cidade, longínquas, abafadas pelos zunidos que ambos têm nos ouvidos. Devagar, o outro começa a descontrair-se. É como se o seu terror, a sua desconfiança, se fossem derretendo com a doçura do chocolate. Põe-se numa posição mais confortável e cola as costas à parede. Rouba olhares sub-reptícios na direção de Mário. Chega mesmo a retomar o lento ordenamento das folhas, embora hesite e o interrompa com frequência. Mas sem uma palavra, nem mesmo a ladainha lamurienta que horas antes denunciara a sua presença.
É Mário que acaba por cortar o silêncio depois de acabar a sua barra e lamber dos dedos lambuzados os últimos restos de chocolate misturados com poeira.
— Já agora — diz — chamo-me Mário. Tens nome, tu?
— Ví… — começa o outro, como que em piloto automático. Depois para, num sobressalto, olha Mário de relance, engole o último bocado de chocolate e gagueja: — Vi… Virgílio.
E Mário volta a ser assaltado por uma estranha sensação de reconhecimento. Aquela voz… não é a voz chorosa que começara por ouvir. É uma voz grave, algo nasalada, um pouco enrouquecida, se bem que essa rouquidão talvez seja passageira. Uma voz que o confunde e perturba mais do que gostaria de admitir. Mas finge que nada se passa. Talvez precisamente por isso.
— Prazer — diz, depois de um pigarreio. À palavra segue-se um silêncio. — Olha, sabes que mais? Continuo com fome — acrescenta, momentos mais tarde. — Espera aí que vou ver se arranjo mais qualquer coisa para a gente comer. Volto já.
E sai, coçando a cabeça.
Regressa pouco depois, trazendo dois pacotes de bolachas e um de vinho, daqueles bem carrascões. Nas suas incursões pela cidade também arranjara algumas garrafas, mas não vai desperdiçar bom vinho com aquele gajo… e além do mais ainda não dispõe de saca-rolhas; tal coisa nunca lhe parecera suficientemente importante para ocupar com ela espaço onde pudesse enfiar mais uma barra de chocolate ou qualquer outro produto ingerível, qualquer coisa capaz de potenciar a sobrevivência.
O outro lá se encontra, ainda a roer o resto do chocolate que com uma mão vai levando à boca, enquanto com a outra está outra vez a rearranjar folhas. Mário entra, tentando parecer descontraído, acocora-se no mesmo local onde antes estivera sentado, abre um dos pacotes de bolachas com os dentes e enfia uma na boca.
— Queres? — pergunta uma vez mais ao outro, de boca cheia, mostrando-lhe o outro pacote. — São boas. De aveia. Ainda estão dentro do prazo e tudo. — O homenzinho não responde, mas a avidez no olhar responde por ele e Mário atira-lhe o pacote para junto dos pés. Depois pousa o pacote de vinho no chão, enfia o das bolachas num bolso e tira a faca do cinto. Ao vê-la, o homenzinho solta um gemido lamuriento, para de mastigar, larga papéis e chocolate, perde o interesse nas bolachas e arrasta-se para o canto, onde se volta a enrolar sobre si próprio como um animalzinho encurralado. Mário repara em tudo mas finge que não dá por nada; limita-se a cortar descontraidamente o bico do pacote de vinho, a voltar a guardar a faca e a beber um longo trago. O vinho é acre e arde-lhe na língua. Já sabia que assim seria, mas isso não o impede de fazer uma careta. Depois engole e transforma a cara franzida num sorriso, ao mesmo tempo que olha para o homenzinho e lhe estende o pacote. — Tens sede? O vinho é uma merda, mas é o que se arranja. — Não fica à espera de resposta. Debruçando-se para a frente, pousa o vinho no chão, a meio caminho entre si e o outro, e finge desinteressar-se do que ele faz ou deixa de fazer.
E é assim que vai lentamente, tão lentamente, baixando as defesas daquele homem, gastando nisso quase o dia inteiro. Com pequenos gestos de camaradagem, sem fazer perguntas — quase sem falar, aliás — oferecendo-lhe agora isto, logo aquilo, mais tarde aqueloutro, como se fossem compinchas de longa data e partilhassem saques obtidos por ambos. São várias as vezes que se farta, que pensa em mandar o homenzinho às urtigas, em ir-se embora, agarrar na tralha e procurar outro refúgio, pois refúgios, numa cidade de construção tão densa e tão esburacada pela guerra, não são coisa que falte. Mas, além da relutância em mudar de base, há uma curiosidade permanente, um incómodo premente, que o levam a ficar. Aquela sensação de que já tinha visto aquele homem em algum sítio, de que ele fizera parte da sua vida anterior, da vida civilizada de burguês rodeado de conforto, da vida de antes da guerra, de antes de perder a casa, de antes mesmo de perder o emprego, talvez até de antes do descalabro económico. E as perguntas que não lhe saem da cabeça. Quem diabo és tu? Como vieste aqui parar? E porquê? Para quê?
No exterior, o dia também decorre razoavelmente calmo. Não volta a haver rebentamentos próximos como os que sacudiram a zona de manhã. Ouvem-se alguns ecos de explosões, e por vezes tiros isolados ou curtas rajadas, mas tudo chega distorcido pela distância. Por volta do meio-dia escuta-se um grande alarido de cães, latidos, rosnidos, ganidos, todo o espectro de som que a espécie produz. Será uma das matilhas meio regressadas ao estado selvagem que deambulam pela cidade, provavelmente uma das maiores, que pelos ecos terá encontrado presa ali perto e luta pelos restos. Mas o tempo não é coisa que pare só por causa de alguns cães, e a canzoada acaba por acalmar, recrudescendo apenas em resposta a um tiro próximo, calando-se por completo pouco depois. Esse é o único momento, no dia inteiro, em que Mário fica mais tenso que o outro, a única altura em que se levanta e se dirige aos pontos de onde se habituara a vigiar as redondezas. Os cães são perigosos, especialmente quando se juntam em grande número e têm fome. E na Lisboa dos dias que correm, os cães andam sempre com fome.
Como os homens, aliás.
E, tal como acontece com os homens, um estômago cheio, ou pelo menos aconchegado, dociliza-os, devolve às suas naturezas alguma brandura. Será provavelmente por isso que ao fim da tarde o outro destrava a língua e começa a falar com um pouco mais de coerência e abundância. A princípio de insignificâncias: recordações dos tempos de rapaz, de férias passadas nas Beiras, de escolas e amigos. Como um velho senil, perdido num presente que não consegue compreender nem aceitar, parece procurar reviver a juventude há muito perdida. Pelo menos é assim que Mário o vê. Mas não mostra impaciência; antes encoraja-o, conta-lhe também episódios passados consigo, alguns verdadeiros, outros nem tanto, enquanto vai tentando subtilmente trazer a conversa para temas mais contemporâneos. Sem grande sucesso, pois a conversa tem principalmente um sentido. Se Mário reage ao que o outro lhe diz, se lhe responde, se argumenta, o homenzinho nem por isso. Usa quase sempre as palavras de Mário como marcadores de ritmo sem grande significado. Para de falar enquanto Mário fala, respeitando-lhe até as histórias mais prolongadas com um silêncio de quem escuta, mas depois não responde e dá sequência, quando alguma sequência existe, apenas àquilo que ele próprio dissera antes, não ao que Mário lhe retorquira. Ao pôr-do-sol Mário está prestes a desistir, mas é então que uma frase muda tudo.
Começa com um “pois é” melancólico. Segue-se uma pausa, um perder o olhar pela janela, espreitando o céu que por essa altura se vai já vendo arroxeado por entre duas ou três nuvens de média altura que ainda brilham ferozmente com o fogo do poente.
— O caro amigo — diz depois o homenzinho, numa voz lenta e pausada — não me saberá dizer, por acaso, quando será possível começar a reunião? Trago aqui algumas propostas orçamentais que queria apresentar aos colegas o quanto antes e…
… e Mário deixa de o ouvir. Algo na sua memória se ajusta. Algo se encaixa no lugar que lhe é próprio. E o puzzle, que até ali não passava de um conjunto desconexo de cores e formas, transforma-se de súbito numa imagem coerente.
Aquela voz…
Aquelas palavras…
Aqueles olhos de carneiro mal morto…
As olheiras que deles caem como cortinados bolorentos de palácio…
Mário fecha os olhos para melhor ver as imagens que se lhe formam na mente. A cara do outro, tal como a vira pouco antes quando a sala ainda estava inundada de luz. Depois a mesma cara, mas sem barba. Com menos rugas. Com os cabelos mais curtos, mais escuros, penteados.
É ele!...
Mário põe-se em pé de um salto, de punhos cerrados, de olhos fitos na silhueta cada vez mais indistinta do homenzinho.
É ele! Tem de ser ele!
Mas no entanto, não é. Aquele homem que ali está na sua frente é um velho enlouquecido, esfomeado, mais miserável ainda do que ele, mais incapaz de prover ao seu próprio sustento, mais indefeso. Ter logrado sobreviver até àquele momento é provavelmente pouco menos que milagroso. Um trapo, que de comum com o homem confiante e cheio de certezas que Mário via na televisão nada tem.
Mas é ele!
Apetece-lhe desfazê-lo à pancada. Apetece-lhe voltar-lhe costas e nunca mais lhe pôr a vista em cima. Apetece-lhe dar-lhe mais comida, plenamente consciente de que, sozinho, o outro acabará por morrer à fome. Apetecem-lhe coisas contraditórias, mutuamente incompatíveis, e por isso fica imóvel, sentindo uma tensão crescente nos músculos, uma fúria, um nojo, um desprezo que nada parece poder conter.
Vê-o a olhá-lo, com uns olhos subitamente aterrados — os olhos dele, sem sombra de dúvida, os olhos dele! — vê-o encolher-se, fechar-se numa bola feita de joelhos, mãos nodosas e cabelo. Ouve-o de novo numa ladainha, numa lamúria balbuciada em surdina.
A ocidente, a última luz desaparece.
Mário acaba por sair disparado da sala, porque tem de fazer alguma coisa, qualquer coisa. Agarra na mochila, começa a enfiar lá dentro provisões, o material mais necessário, uma manta, tudo aquilo que não pode dispensar. Mas a mochila é pequena para tanta coisa, e Mário pontapeia uma garrafa vazia, num acesso de frustração. Depois, estaca.
— Não, foda-se — rosna. — Ah, não! Nem pensar nisso!
Larga a mochila, que cai no chão e se derrama, puxa pela faca, dá meia volta, corre para a sala onde deixara o outro.
Não o encontra lá.
Mário entra em modo de caça. Silêncio. Total silêncio. Fecha os olhos, entrega aos ouvidos toda a atenção, amaldiçoando o zumbido que neles ainda ressoa.
Ouve uma lata a rolar por um corredor, um grito de susto, passos que parecem de corrida, um estrondo, o farfalhar de papéis.
E Mário percebe onde o outro está. Corre para lá, de faca em punho, sem hesitar um segundo. Encontra-o caído no chão. Agarra-o pelo colarinho, puxa-o, põe-no em pé, olha-o bem fundo nos olhos, à ténue luz de um incêndio distante.
— Sim — murmura. — És mesmo tu.
E espeta-lhe a faca na boca do estômago. E torce, enquanto o outro grita, estrebucha, esbraceja. Mário tapa-lhe a boca com a mão, puxa-lhe com toda a força a cabeça para si, tira-lhe a faca das tripas. Depois, corta-lhe a goela. O outro perde a força, perde os sentidos, perde a vida. Mário solta-o e ele cai. E ali fica no chão, a perder o sangue que lhe resta.
Mário não desperdiça mais tempo com ele. É possível que o grito tenha chamado alguma atenção indesejada, por isso não pode ficar ali. Agarra numa mancheia de caliça e poeira, espalha-a pelo sangue que lhe veio cair sobre a roupa e os sapatos, corre à divisão que durante algum tempo lhe servira de casa, mete na mochila o que pode, atafulha os bolsos, abandona o resto. É pena, mas tem de ser.
E deixa para trás a ala poente do Terreiro do Paço.
Com sorte, a Glock ainda está onde a escondera. Com sorte, os velhos companheiros aceitam-no de volta. Com sorte, poderá voltar à guerrilha.
Porque afinal vale a pena.
Porque nem todos os canalhas se foram embora. Apesar da guerra, alguns deles ainda andam por Lisboa.

N.A. - Eu sei o que estão a pensar: que os acontecimentos descritos neste conto são assustadoramente prováveis e se vão tornando mais prováveis à medida que o tempo passa e a política não muda. Nada que o torne adequado para um site com as características deste. O editor fez-me a mesma observação. E eu respondo-vos o mesmo que lhe respondi a ele: sim, é verdade. Mas que aquela personagem, aquele "Ví... Virgílio", se deixe apanhar numa situação destas, isso sim, é infinitamente improvável. Gente daquela é a primeira a fugir quando as coisas aquecem. Deixam aos outros as consequências dos desastres que provocam.
E também sei o que alguns de vocês estão a pensar: o Guimarães a escrever com o acordo ortográfico, depois de ter exigido que no primeiro conto aqui publicado se respeitasse a ortografia portuguesa?! Sim, é verdade. Ainda não gosto do AO (especialmente do que fizeram ao pobre do "pára"), mas tive uma longa conversa com o editor — que não me obrigou a nada, diga-se de passagem — e compreendi o ponto de vista dele. E julgo que não há regresso, portanto mais vale que me vá habituando. Talvez um dia deixe de custar. Tudo pode acontecer.
Mesmo o que é infinitamente improvável.

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