segunda-feira, 17 de junho de 2013

Hambrelín ou A Tabuada das Ratazanas

por José Eduardo Lopes



NE: Este conto foi inspirado pelos contos da série das Ratazanas e por uma célebre lenda alemã.

Depois de séculos a transmitir às crias pequenas todos os ardis e táticas de sobrevivência da espécie, as ratazanas pensaram que já estava na hora de progredirem, de ampliarem os seus conhecimentos e aquilo que conservariam para transmitir aos descendentes. Começaram por aprender a ler, não os textos em palavra impressa, desenhada, mas textos em braile, que convinham mais à hipersensibilidade dos seus focinhos táteis. Logo que isso se tornou comum entre as ratazanas, estas ambicionaram aprender a contar e, mais do que isso, a multiplicar os números. Para o conseguir, converteram em escola improvisada um velho presbitério em ruínas de uma cidade nas margens do rio Weser. Primeiro, convocou-se, entre os milhões desses roedores, aqueles que se haviam revelado uns próceres em aprendizagem, e desafiaram-nos a aprender e a dominar a laboriosa ciência da multiplicação dos números. Logo que estes o conseguiram, foram convertidos em professores creditados da multitude de ratazanas da cidade. A aprendizagem era gradual e cumulativa. Começavam por dar uma noção do que eram os números e a explicar, com exemplos tirados da vida plebeia das ratazanas — dedinhos por comer, bolos para roubar, cadáveres de executados no largo da catedral, o número de abutres no céu sobre os telhados das casas — as operações mais simples como a adição ou a subtração de números. Depois de isso assimilado, ascendiam ao estádio supremo da aprendizagem, a multiplicação. De início, o processo mantinha uma certa tolerância, com aturadas explicações, enriquecidas com exemplos imediatos; mas, paulatinamente, o ensino tornava-se mais rigoroso e exigente, e todas as ratazanas aprendizes eram obrigadas a saber a tabuada de cor e salteado. Mais, se alguma das ratazanas se enganava ao declamar a tabuada era atirada para a cripta do presbitério através de um buraco no teto, já que a porta dessa cripta ruíra há muito. Ali dentro, a ratazana punida continuava a repetir a tabuada até estar plenamente convencida de que a sabia de cor, e então chamava pelos seus. Estes faziam-lhe um sumário teste oral que, a ser bem sucedido, era coroado pela operação de resgate: lançavam-lhe uma corda para ela emergir da cripta. O problema, nesses casos, eram os nervos. As ratazanas encerradas na cripta, mesmo depois de repetir porfiadamente a tabuada, acontecia enganarem-se nos números quando eram ouvidas, e o castigo era mantido por dias ou semanas. De todas as formas, as ratazanas suportavam-no, salvas de males maiores pela presença na cripta do estropiado Flautista, a quem davam uma ou outra dentada para enganar a fome e retemperar as forças necessárias para suportarem todo aquele tempo de reclusão.

2 comentários:

  1. Grato pelo (excelente) trabalho de edição! O texto aqui publicado é notoriamente melhor do que o esboço inicial.

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