quinta-feira, 12 de julho de 2012

Pandorama

por Jorge Candeias


Tentou convencer-me de que não era deste planeta.
Tentou convencer-me até de que não era deste universo. De que tinha nascido num sítio com seis dimensões em vez das nossas quatro. De que tinha uma forma indescritível, mas que esta nada tinha em comum com a cabeça e tronco e pernas e braços que eu estava a ver na minha frente.
Tentou convencer-me de que alguém um dia lhe tinha dado uma caixa. De que lhe tinha dito para nunca, de modo algum, fosse pelo que fosse, a abrir.
Disse-me que a abriu.
E tentou convencer-me de que no momento seguinte se viu sugado para fora da sua realidade. De que se achou em pleno Big Bang, logo intersetado por galáxias em rápida formação e mais rápido ainda afastamento. De que foi minguando sem dar conta de minguar, como um balão que se esvazia. De que de repente se viu frente a frente com uma galáxia do seu tamanho, e logo após com um planeta, e de seguida com uma montanha, e imediatamente depois com uma cabra com mau feitio.
Tentou convencer-me de que tudo isto não demorou mais que um instante. Um piscar de olhos. Um intervalo quântico no tempo.
Tentou convencer-me de que o tempo só recomeçou realmente a avançar quando a cabra baixou os cornos e arremeteu.
Disse-me que nesse momento o tempo passou a passar m u i t o d e v a g a r i n h o.
Que conseguiu subir a uma árvore, sem saber bem como. Sem sequer saber o que era uma árvore ou o que era subir.
Que passado um tempo quase infinito a cabra acabou por se fartar e se ir embora.
Que lá conseguiu encontrar o caminho até à cidade, mesmo achando tudo o que o rodeava inexprimivelmente bizarro.
Tentou convencer-me de que eu fui a primeira pessoa que encontrou.
Disse-lhe para ir à merda. Para ir tentar enganar outro parvo. Perguntei-lhe como raio falava português sem sotaque se isso fosse verdade.
Tentou convencer-me de que não fazia a mínima ideia do que era esse português de que eu falava. Nem o tal sotaque, nem mesmo falar. De que pensava em comunicar e o corpo simplesmente comunicava, de que pensava em deslocar-se e o corpo punha um pé à frente do outro. Tudo sem saber como.
Continuei sem acreditar numa palavra. Obviamente. Vocês acreditariam?
Tentei virar-lhe costas, ir-me embora. Ele agarrou-me no braço, não deixou.
E meteu-me uma caixa na mão, dizendo-me para nunca, de modo algum, fosse pelo que fosse, a abrir.
E eu agora pergunto-vos, curioso: abro?

4 comentários:

  1. Por improvável que pareça, não acho a cena assim tão improvável... Um pouco. Sim. Mas não muito improvável.
    Mas é bastante curiosa, sem dúvida alguma.
    Gostei particularmente da descrição que o estranho faz do caminho que trilhou de sua possível outra realidade até o momento em que a cabra desistiu.
    Gostei :)

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  2. Lá está; o que é infinitamente improvável para uns não o é para outros. Para quem acredita em bruxas e almas do outro mundo, as histórias de terror que metam bruxas e almas do outro mundo são inteiramente realistas.

    Coitados.

    Devem passar a vida num susto.

    E é precisamente nisso que é bom ser o editor de uma publicação como esta. O que conta é o que é infinitamente improvável para _mim_. E para os autores, claro, mas fundamentalmente para mim. ;)

    E para mim, tanto como autor como como editor, esta história é infinitamente improvável. :)

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