por Jorge Candeias
Se tu, leitor, me emprestares uns minutos da tua
vida, eu conto-te uma história. É uma troca justa, parece-me, até porque quem
ma contou jura a pés juntos que a história é verdadeira. Não que se tenha
passado com ele, nota bem. Ele próprio a ouviu contar a alguém que um belo dia
encontrou nunca me chegou a revelar onde. Mas diz que o relato que me fez é
precisamente o que esse conhecido lhe fez a ele, palavra por palavra, tintim
por tintim, com os palavrõezinhos todos tal e qual. Duvidas? Eu também
duvidaria se não o conhecesse, mas conheço. Já fui testemunha de extraordinárias
proezas de memória por parte deste meu amigo. A princípio ficava boquiaberto,
não acreditava, achava que tinha de haver ali truque, uma qualquer consulta a
fontes que o meu olhar atento não vislumbrava, um qualquer ventriloquismo. Depois
vim a saber que não. É um tipo estranho, por vários motivos de que adiante talvez
te venha a falar, mas o principal é a memória. Memória eidética, parece que é
assim que se chama aquilo de que sofre. Sim, “sofre” é a palavra certa. Imagina-te
a nunca esquecer nada, nem a mais insignificante ninharia, nem a cena mais
traumática, e talvez compreendas até que ponto ele pode parecer desaparafusado
ao primeiro contacto. Na verdade faz um pouco de propósito. Exagera. Diz que
assim afasta logo aqueles que não prestam. Que evita ter depois de recordá-los muitas
vezes.
Mas adiante, que não é dele que te quero falar e sim
da história que contou. Ele diz que é verdadeira. Isso basta-me? Não por
inteiro, não. Mas o melhor é avaliares por ti próprio. Por isso escuta. Ou lê. Depois
voltaremos a conversar. Cá vai:
Eh, pá. Posso? Pede-me aí uma bebida. Forte.
Qualquer coisa, não interessa. Não, meu, acabei de chegar de uma missão.
Foda-se, não me digas nada, caralho. Espera que já te conto. Acho que não é
secreta. Seja como for, secreta ou não, amanhã já toda a gente sabe. Os
operadores do intercom, sabes como é… Pois. Mas deixa-me só descansar um
bocadinho. Relaxar. Ou descontrair. Sei lá. Qualquer coisa, ou o caraças. Ainda
não parei de tremer. Nunca vi nada assim.
Obrigado. Ah, geladinho, era mesmo isto. Está mesmo
bom. Ufff…
Pá, estás a ver aquela caverna identificada na
semana passada pelos batedores? A do monstro? Pois. Fomos lá. Um esquadrão
pequeno, só cinco gajos, com o plano do costume: entrar à socapa, dispersar,
camuflar e esperar. Malta de confiança, menos o idiota do Zizum. Impingiram-mo
à última hora. Substituição de um dos meus tipos, que caiu de molho anteontem
com uma indigestão. Sorte a dele. Pois, o comando foi meu. Estou tão fodido com
isso!... Nem te passa.
Mas enfim. Correu tudo bem, a princípio. Fez-se
tudo segundo o regulamento operacional e o monstro não deu chatices. Mexia-se
de vez em quando, mas não pareceu topar nada, e a gente toda na maior, que ia
ser uma missãozinha daquelas de limpar o cu a meninos. Tive de mandar calar os
outros; era só piadinhas no intercom. Pareciam putos. O monstro, claro. É uma
besta feia como sei lá o quê e os gajos não paravam de mandar bocas por causa
disso. Sim, ainda é. Já lá chego, foda-se, tem calma contigo. Isto tem de ir
por ordem, senão não se percebe nada.
Começou a dar merda quando o monstro se pôs em pé
e, sem ai nem ui, pespegou com uma cacetada de traparma mesmo em cheio no pobre
do Bzor. Pá, só vendo. Aquilo parte com uma velocidade do caraças, e nem dá
tempo para cagar nem para acender a luz, pás, parecia um trovão. O Bzor?
Nem deve ter tido tempo para largar um foda-se. Ficou logo feito em papa. Aqui
para nós, o gajo escolheu mal o sítio, e eu também fui parvo, que não reparei.
Prendeu-se no teto da caverna. O monstro deve ter topado com ele lá. É a única
explicação; só mandou uma traparmada e acertou-lhe em cheio. Não foi sorte de
certeza. Não pode ser, meu, não pode. Com tanto sítio onde acertar ia logo
calhar nele por obra e graça de quê? Não, pá. O bicho acertou-lhe à primeira, e
com uma força do caralho, que fez tremer tudo. Deve ter visto o gajo. Sei lá! O
Bzor camuflou-se mal, se calhar. Eu de onde estava não o via. Era um tipo em
que confiava, um tipo experiente, já tínhamos tido umas aventuras juntos e
sempre se portou como deve ser. Não percebo. Negligência, sei lá. Às vezes um
gajo acha que já sabe tudo, mas não sabe e fode-se por isso. Se calhar foi
isso.
Grande merda…
Ora, a seguir… a seguir foi um pandemónio do
caraças. O Zim precipitou-se, largou a voar direitinho ao monstro, aos berros
que ia ajudar o Bzor, para ele ter calma que estava já a chegar, e o caraças, e
eu aos berros com ele para voltar para trás, que o outro já estava feito em
picadinho, e o Zim, moita. Os gajos eram amigos há bué, andavam juntos nisto
desde que eu os conheço, ou desde antes, que já os conheci juntos. E são dos
meus tipos há uma porrada de tempo, portanto estás a ver. Ou eram. Foda-se! Que
cagada do caralho! Ainda nem acredito bem.
Pois, como eu ia dizendo o Zim passou-se
completamente dos carretos. Para ajudar à festa, o parvalhão do Zizum também
levantou voo, não cheguei a perceber porquê. Se calhar assustou-se, ou o
caraças. Sei lá eu. Nunca percebi esse gajo. Também lhe mandei um berro e
consegui fazer com que voltasse para o sítio de onde tinha saído, mas estava a
ver que em vez de pousar como quem sabe o que está a fazer se espetava na
parede da caverna. E se calhar tinha sido melhor para toda a gente se se
tivesse espetado. Nabo da merda!
De todos, só o Izeez é que se portou bem. Que eu
saiba. Também não o conseguia ver de onde estava, ele pode perfeitamente ter
andado a flutuar por ali armado em cretino como os outros. Mas pelo menos conservou
o silêncio de intercom. No meio de tanta asneira, isso acaba por contar a favor
dele, não é? Pois. Não que lhe tenha servido de muito, mas enfim…
O Zim? Acabou por perceber que não podia fazer
nada e lá voltou para trás são e salvo. Acho que o monstro ainda o topou, mas
não o apanhou. Nem sequer chegou a atacá-lo, aliás. Deve ter visto o gajo só de
relance, ou uma merda dessas. A caverna é uma confusão do caraças, com tralha e
lixo por todo o lado. Há uma porrada de esconderijos, há zonas de sombra e
zonas iluminadas que confundem a vista. Por isso é que achávamos que ia ser
fácil, que bastava a gente esconder-se, esperar o momento certo, e pumba, dar
conta do recado. Mas não, foda-se, não foi nada disso. Mas é que não foi mesmo…
Hã? O monstro? Esse andou um bocado dum lado para
o outro, a olhar para tudo de olhos esbugalhados, a fazer tremer a caverna com
os passos que dava, bum, bum, bum, para trás e para a frente. Mas a
gente manteve-se quietinha e o gajo não nos topou e não atacou mais ninguém.
Eu nessa altura estava completamente à toa, sem
saber o que fazer. O plano era para cinco operacionais, não para quatro. Pelo
menos o arranque da missão estava planeado para cinco; só para depois é que
havia planos de contingência. Ninguém estava a contar com uma baixa ainda antes
de começar. Julgávamos que ia ser uma tretazinha sem grandes chatices, entrar,
apanhar o monstro de surpresa, despachá-lo, sair e já está. Foi uma parvoíce,
que todas as missões podem dar merda desde o início e os gajos lá de cima
tinham a obrigação de saber disso, mas ninguém me perguntou nada e aposto que
agora me vão fazer a folha bem feitinha para ver se se safam a apanhar com
salpicos da merda que fizeram.
Estás a aprender, puto? É assim que as coisas
funcionam por aqui. Vai-te habituando.
Olha, pede-me mas é outro fresquinho que este já
foi.
Enfim. Enquanto a malta se encolhia tive tempo
para pensar e arranjei outro plano. Ainda pensei mandar tudo à merda e voltar
para trás, ainda me passou pela cabeça a parvoíce de atacar o bicho à toa, e
mais umas quantas idiotices do género, mas voltou-me o juízo depressa. Pelo
menos na altura achei que era juízo. Achei que se houvesse maneira de cumprir a
porra da missão, mesmo com quatro, talvez conseguisse evitar sair daquilo todo enrabado.
De modo que pus a mioleira a funcionar e lá arranjei um plano novo. Colado com
cuspo, pá, claro. A merda foi toda improvisada ali mesmo, estavas à espera de
quê, milagres? Comuniquei o plano aos outros e à central, pareceu-me que toda a
gente tinha entendido, ninguém levantou pelinho, e depois tratámos de esperar.
Apanhámos uma seca do caralho, maior ainda do que
é hábito. A porra do monstro não havia meio de se deixar dormir. A caverna
estava sempre cheia de luz, e volta e meia lá o ouvíamos a grunhir. Como queres
tu que eu saiba, meu? Não falo monstrês, pá, nunca me deram essa instrução e
mesmo se tivessem tentado a minha cabeça não é boa para essas merdas. Havia de
me entrar tudo por uma pata e sair pela outra. E não tinha na equipa ninguém
que falasse; o único gajo que tinha umas luzes sobre o significado daquela
grunhideira era o tipo que ficou de molho.
Ha, que correu tudo mal, diz este. Achas? Ainda
não ouviste nada, meu. Tem lá paciência, que as partes mais sumarentas ainda aí
vêm. Íamos na seca, não era?
Pois, uma seca que só visto. Mas ao fim duma
porrada de tempo lá se foi a luz. Ficámos quietinhos ainda durante um bocado e quando
achei que estava na altura mandei ligar os infravermelhos e os visores
olfatométricos e assumir as posições de ataque. Com cautela, de fininho. Não! Brincas?
Quando chegámos às posições e consegui ver bem o monstro fiquei naquela, estás
a ver?, outra vez indeciso. Pá, porque achei que o bicho estava numa posição
esquisita, e já aprendi o suficiente nesta vida de merda para torcer os
apêndices a coisas esquisitas. Mas o gajo não se mexia, estava só para ali, e
eu tinha de fazer alguma coisa. Não podia passar o tempo todo só à coca, a ver
o que o bicho fazia, não é? Pois. De qualquer maneira, achei que era melhor
jogar pelo seguro, não fosse o diabo tecê-las, de modo que mandei o gajo que se
tinha portado melhor, o Izeez, fazer um reconhecimentozinho de proximidade
enquanto a gente ficava cá atrás a ver em que paravam as modas. E o Izeez lá
foi, num voo calmo e mais ou menos silencioso, fazendo um grande rodeio para
não denunciar a posição em que a malta estava, como um bom menino bem ensinado.
Deu uma volta ao bicho, transmitiu uma mensagem dizendo que lhe parecia estar
tudo bem, e ia começar a dar outra volta, só por causa das tosses.
E foi aí que a puta da missão mergulhou na merda
até às antenas.
Pá, tu não vais acreditar, mas juro que o que te
vou dizer é mais pura das verdades. Os gajos do departamento técnico têm as
imagens que o sistema gravou e devem estar agora a cagar-se todos com elas.
Imagina a cena: uma caverna escura como o fundo dum poço a meio da noite, a
gente com visão integrada infravermelha e olfatométrica, tudo com os nervos à
flor do pelo, tudo assustadiço, com os sentidos todos alerta, adrenalina a
rodos, reações de primeira, especialmente o Izeez, que era quem estava num
perigo mais imediato. O monstro sem nada disso, com olhos esbugalhados ou sem
eles. Que eu saiba, aquelas coisas feias da espécie dele não são capazes de ver
um boi à frente dos apêndices assim que a luz diminui. Não é? Sempre nos
disseram isso, tu sabes. Pois. De modo que devia ter sido fácil, não achas? O
Izeez chegava lá, dava umas voltas ao gajo, e mesmo que o bicho topasse que ele
andava por ali não havia de conseguir fazer nada.
Pois.
Só que fez.
Estava o Izeez a começar a segunda volta quando o
monstro levanta uma patorra dum tamanho descomunal como se não pesasse mais que
uma bactéria, e o apanha. Apanha-o, meu! Levanta a pata num instante, e zás,
apanha-o em pleno ar, no escuro, como se fosse a coisa mais fácil do mundo e
arredores!
Eu sei que não acreditas, mas estou-me a cagar
para acreditares ou não. O que vi sei eu. E o que ouvi também, que o Izeez
estava a transmitir naquele momento. Num instante estávamos todos a ouvir a voz
do tipo, no seguinte ouvimos uma chiadeira horrível de coisas a serem esmagadas,
o princípio dum grito e depois mais nada.
Nem pio.
Ainda demorou um bocado a entrar-me que o Izeez
também tinha ido para o caralho, como o Bzor, e que agora éramos só três.
Depois percebi que sendo só três não íamos conseguir fazer a ponta duma antena.
E uns segundinhos mais tarde lá cheguei à conclusão de que ou bazávamos imediatamente
dali para fora, ou ninguém ia conseguir sair, ficávamos lá todos transformados
em picadinho. Mas quando berrei a ordem de retirada era tarde demais. Tanto o
Zim como o Zizum tinham abandonado os esconderijos e iam armados em borboletas
de corrida a caminho do monstro. O intercom era uma algaraviada que ninguém se
entendia, com o Zim outra vez todo passado da tola a dizer que ia ajudar, que já
estava a caminho, que o Izeez aguentasse, e mais isto e mais aquilo, e o
imbecil de merda do Zizum aos berros de “mas o que é que se passa, mas o que é
que se passa?” e a voar aos ziguezagues.
Pá, esse gajo!... Juro, a sorte dele foi ter
ficado lá. Se o gajo tivesse voltado, quem o matava era eu. Devagarinho. Foda-se,
que ser tão burro devia ser crime, caralho!
Não, mas espera! Ainda não acabou. Já vais ver até
que ponto chegava a cretinice.
Fomos prevenidos contra aquele aparelhómetro dos
monstros, o criocoiso, certo? Ou isso, quero lá saber como aquela merda se
chama. Não interessa. O que interessa é que fomos todos prevenidos. Toda a
gente ouviu falar daquilo, toda a gente sabe o que aquilo faz, toda a gente
sabe que é preciso ficar longe daquela porra. Não é? Pois.
Sabes o que a besta quadrada do Zizum fez? Não
queres adivinhar? Vá, dou-te três tentativas.
Não.
Népia.
Heh… era bom, era!
Não, meu. O anormal pousou no criocoiso! Pousou
naquela merda! Pela cabeça de que espécie de palhaço desmiolado passa pousar
numa merda daquelas, diz-me lá? Pá, juro! É possível, é; o gajo pousou mesmo
naquilo. Ora, congelou logo, claro. Nunca mais se mexeu, nunca mais tugiu nem
mugiu, e o monstro só teve de ir lá com um dedinho, devagarinho, com um ar que
sou capaz de jurar que era de gozo, e fazê-lo em esparregado de aselha.
O Zim? O Zim já se tinha escondido ali perto. Caiu
em si, acho eu, antes ainda de chegar ao monstro. Ia direitinho contra ele, e
de repente só o vi guinar para a direita e desaparecer. Segundo me disse
depois, enfiou-se numa reentrância qualquer. A cena com o Zizum foi mais tarde,
que esse anormal nem voar a direito sabia. Deixou-se ficar para trás, e quando
chegou perto do monstro já o Zim me tinha desaparecido da vista. Não faço ideia
se viu ou não. Ele disso não falou. Só sei que não fez nada, não reagiu
estupidamente como com os outros dois. Não, que mais tarde me contactou pelo intercom
a explicar mais ou menos onde estava. E a pedir desculpa. Pá, querias que eu
fizesse o quê? Não podia abandoná-lo sem mais nem menos, mas também não podia
enfrentar sozinho o monstro. Disse-lhe que estava tudo perdoado, mas que ele ia
ter de ter muita paciência e um belo par de colhões para não se tentar
escapulir cedo demais. O gajo estava numa posição perigosa, demasiado perto do
monstro, sujeito a ser esmigalhado por acidente. Passou-me pela cabeça arranjar
uma diversão, sim, e falei-lhe nisso, mas conversámos e chegámos à conclusão de
que aquele monstro já tinha mostrado ser um perigo do caraças e provocá-lo era
demasiado arriscado. Ainda nos apanhava aos dois em vez de só o apanhar a ele.
Ora, claro que me vão atirar para cima as culpas todas. Cagando e andando,
rapaz. Quero lá saber. Se me safar desta merda só com uma etiqueta de cobarde,
pago uma rodada à malta toda, de tão contentinho que vou ficar. E nunca falei
tão a sério na vida.
Não me pedes mais uma? Vá lá, não sejas forreta
com um camarada caído em desgraça. Porreiro. És um bacano. Ou então queres
ouvir o resto da história, hã? Na volta é mais isso.
Pois, ficámos a fiar fininho, cada um no seu
canto, à espera duma oportunidade. O monstro ainda se remexeu durante mais um
bocado, fez uma série de coisas que não percebi, umas monstrices quaisquer lá
dele, esteve quase a esmigalhar o Zim umas duas ou três vezes, volta e meia largava
um grunhido, e uma vez soltou um peido do caraças, tão ruidoso que ficou a
ecoar na caverna durante uma porrada de tempo, era só ruído de peido a vir de
todos os lados, uma nojice pegada — pá, não te rias que não tem piadinha
nenhuma, aquilo meteu um valente nojo, e o que vale é não me chegarem os
cheiros lá de fora senão nem quero imaginar o que podia ter sido — mas enfim,
depois dum bom bocado lá sossegou. Ainda esperámos bué, para ver se não
corríamos riscos, para ver se não se repetia a cena do Izeez, mas finalmente
decidimos arriscar, e…
Digo, pois. Foi mesmo isso. Repetiu-se a cena do
Izeez.
Não sei, pá. O Zim saiu lento. Fartámo-nos de
discutir por causa disso, ele a teimar que, se fosse devagar, era capaz de não
chamar a atenção ao monstro e de conseguir safar-se sem chatices de maior, e eu
a insistir que o melhor era o gajo bazar dali para fora o mais depressa possível.
Acabei por autorizá-lo a fazer o que achasse melhor. Pá, eu sei, mas, porra, a
vida era dele, e percebi que o tipo ia acabar por fazer o que bem entendesse
com ordens ou sem elas, de modo que achei melhor não lhe dar ordem nenhuma. Ao
menos assim, se se safasse, não tinha depois de apanhar com uma investigação
por insubordinação em cima. E de qualquer forma, eu não tinha a certeza do meu
plano ser melhor que o dele. Portanto, olha, foi como foi. E sim, foi
igualzinho. O cabrão do monstro levantou uma patorra e apanhou-o em pleno ar. A
única diferença foi eu ter sido poupado a ter de ouvir também o pobre do Zim a
morrer, porque tínhamos decidido fazer silêncio de intercom, não fosse a coisa
dar merda. Foi tudo em silêncio, ou melhor, só se ouviu o monstro.
Vim-me embora, querias que fizesse o quê? Vim-me
embora e não volto lá, e estou-me cagando para o que os gajos lá de cima digam.
Não volto a entrar naquela caverna de merda, e se alguém me perguntar vou
aconselhar que mais ninguém entre. Até lhes bato as asas se for preciso. Aquele
monstro é um perigo do caneco. Íamos perder gente de certeza. Que se foda a
limpeza das cavernas. Pá, a sério. É que das duas uma: ou o deixamos em paz e
vamos pregar para outra freguesia, ou então temos de lhe cair em cima com tudo
e mais alguma coisa, e mesmo assim tenho as minhas dúvidas de que saíssemos de
lá com a vitória. A porra da caverna devia ser declarada interdita e pronto.
Qualquer outra coisa vai dar merda. E podes escrever o que te digo.
Enfim.
Olha, vou-me embora. Pá, obrigado por este
bocadinho. Eu se calhar não te devia ter dito isto tudo, mas desabafar fez-me
um bem do caraças. Nem imaginas. E obrigado também pelos fresquinhos. Vá, fica
bem.
E pronto, leitor, foi isto que ele me contou. Tintim
por tintim, sim, que eu gravei tudo. Não à primeira, claro. Ele contou-me esta
história, eu fiquei de boca aberta e perguntei-lhe se se importava de voltar a
contá-la, explicando que queria deixar aquela coisa espantosa registada para a
posteridade. Ele disse que estava bem, e eu fui buscar um gravador e gravei
tudo. Não dei por alterações. Se houve alguma, passou-me ao lado. Não posso ter
certeza, claro, que a minha memória não é como a dele. Sou um tipo
normalíssimo. O tipo mais normal que tu vais encontrar na vida.
Tirando o pequeno pormenor de conversar com
mosquitos, claro. E de ser amigo pelo menos de um.
Portanto é isto. Sabes tanto como eu. Ou por outra,
não sabes, ainda não. Falta uma coisa, só mais um detalhezinho sem importância.
É que quando ele acabou de me contar esta história
pela segunda vez acrescentou que foi por causa do que nela se conta que os outros
mosquitos nunca mais me vieram chatear. Costumavam vir todos os dias, fazendo
voos rasantes aos meus ouvidos assim que eu desligava a luz, mantendo-me
acordado por horas a fio com aqueles zumbidos de enlouquecer. Mas deixaram de
vir, sem que eu percebesse porquê. Depois, tive esta conversa com o meu amigo,
e ele explicou que depois do que me contou ficaram com medo de mim. Mas acrescentou
que eu não devia descontrair-me, que me devia acautelar, porque se eles por
acaso voltassem as coisas seriam duras para mim.
E não voltaram.
Ainda não.
A não ser que… espera… será que aquilo ali na parede é
um? E ali ao lado, um pouco mais acima… e na outra… e…
Oh, diabo!
Aguenta aí um bocadinho, se fazes favor. Eu volto já.
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