por Miguel Hernâni Guimarães
NE: por pedido expresso do autor, este conto respeita as regras ortográficas anteriores ao AO90... embora só uma palavra no título fosse alterada com as novas.
Quando Miguel
foi buscar o filho ao terminal do submaglev, deu com ele lavado em lágrimas e
carrancudo. Encheu-o de perguntas mas a única resposta que o miúdo lhe deu foi
virar-se para a janela, de bochecha encostada ao punho e cotovelo apoiado no
braço do banco, observando com olhos baços os prédios decrépitos do centro
histórico enquanto a velha carripana da família era lentamente conduzida até
casa pelo serviço central de controlo de tráfego.
Miguel acabou
por desistir. Quando o raio do puto ficava com aqueles humores não havia nada a
fazer. Era deixá-lo choramingar até ao fim. A mãe logo lhe arrancaria o que o
tinha posto naquele estado. A conta-gotas, que o miúdo era casmurro. Portanto
fez o mesmo que o filho: apoiou o cotovelo ao braço do banco, encostou o punho
à bochecha e pôs-se a ver a paisagem.
Quando chegou
a casa, Conceição já lá estava. Tinha acabado de chegar, e entregava-se à
laboriosa tarefa de despir a profusão de arrebiques, fitinhas e penduricalhos
que estavam na moda naquela semana. O puto nem a olhou: arrancou logo para o
quarto e trancou-se lá dentro com estrondo. Conceição olhou Miguel como quem
pergunta o que se passa. Miguel encolheu os ombros.
— Encontrei-o
assim.
O olhar
interrogador não vacilou. Miguel explicou:
— Não me disse
nada. Está amuado.
Conceição fez
rolar os olhos, suspirou, levantou-se ainda só meio desenfeitada e foi bater à
porta do quarto do filho.
— É a mãe,
Zezinho. Posso entrar?
A porta destrancou-se
depois de um par de vá-lás e a mulher desapareceu. Era bom sinal.
Ficaram lá
dentro até o carrilhão da casa repicar pela segunda vez para o jantar. Miguel
já estava à mesa, impaciente, com a sopa de soja na frente e o puré de tofu na
calha, sentindo-se tentado a começar a comer sem a família. Quando esta chegou,
vinha tristonha. Já não só o puto, mas Conceição também. Foi a sua vez de
levantar as sobrancelhas, mas a mulher abanou a cabeça.
Resignou-se à
espera e começou a comer.
O jantar
decorreu basicamente em silêncio. A meio, já farto de todo aquele sossego,
Miguel levantou-se, foi buscar os óculos e respondeu ao olhar reprovador da
mulher com um encolher de ombros e uma fungadela. Sentou-se, ligou os óculos e,
quando a hiperrealidade do jogo se sobrepôs à cena deprimente do jantar, a boca
curvou-se-lhe num leve sorrisinho enquanto dava tiros com o mesmo garfo com que
de vez em quando trespassava uma batata frita e a levava à boca.
Após o jantar,
depois do puto retirar para o quarto, o casal teve a conversa que tardava.
— Então?
Percebeste o que há com ele? — começou Miguel.
— Parece que
teve problemas na escola.
— Até aí cheguei
eu sozinho. Que problemas? Andou à porrada com alguém?
Conceição
suspirou.
— Não. Pior.
Parece que está a ficar para trás.
— Para trás
como?
— Oh, parece
que os outros miúdos fizeram ontem cinco cadeiras e ele só conseguiu fazer três.
Trouxe um papelinho da escola. Reprovaram-no em física do estado sólido e história
mongol do século dezassete.
— E depois?
Faz essas cadeiras amanhã. Isso está sempre a acontecer com os putos. Há dias
em que estão mais em baixo e deixam cadeiras para o dia seguinte, não…
— Não é assim
tão simples, Miguel — interrompeu Conceição, baixinho, torcendo o guardanapo
nas mãos e erguendo o olhar para as luzes que brilhavam no canto da sala.
— Como não? —
Miguel começava a irritar-se. — Que diabo se passa, afinal? Desembucha!
Conceição
voltou a suspirar.
— O Zé tem
andado a mentir-nos — murmurou. — Não deixou ficar para trás só estas duas
cadeiras. Já nos devia ter dado mais papelinhos daqueles. Apareceu hoje naquele
estado porque a escola lhe exigiu a devolução dos papéis assinados até amanhã.
De todos. Caso contrário contactaria os pais. O miúdo ficou em pânico.
— De todos?
Que queres dizer com isso de todos? Quantos são, afinal?
— É uma pilha,
Miguel. Ele mostrou-mos.
— Quantos são,
porra? Quero um número!
— Não os
contei. Mas a pilha é grande. E segundo ele diz tem cento e vinte e três
cadeiras por fazer.
Claro que deu
em crise. Houve gritos, houve choros, houve acusações e acabaram todos na net,
cada um por seu lado, cada um absorvido pelo seu alienatório preferido.
Nos dias
seguintes Miguel tentou resolver o assunto. Foi pessoalmente à escola, onde
teve uma embaraçosa conversa com um par de professores, um dos quais exercia
naquela semana o cargo de presidente de turma. A conversa acabou com ele a sair
desembestado porta fora, acusando todo o corpo docente de não valer um cêntimo,
e ameaçando levar o miúdo para outra escola.
Parvoíce. Os
professores eram todos andróides e estavam ligados em rede aos serviços pedagógicos
centrais do ministério. Em qualquer outra escola a matéria seria ensinada
rigorosamente da mesma forma, e esperava-se que os alunos a aprendessem
rigorosamente da mesma maneira. Miguel sabia tudo isto, mas naquele momento não
queria saber. Estava mais que furioso.
Quando se
acalmou voltou para casa e consultou um pedopsicólogo. Enviou-lhe a última mnemogravação
do miúdo e dez minutos depois recebeu o resultado. Não era bom. Aparentemente,
o filho sofria de uma coisa qualquer chamada desfasamento cognitivo de terceira
ordem, conjugado com insuficiências na resposta ética. Por baixo, o relatório trazia
uma longa série de hipóteses para a origem do problema e algumas sugestões de
solução. Algumas, tanto das hipóteses como das sugestões, punham a ênfase em
deficiências do meio familiar, o que imediatamente o encheu de dúvidas sobre a
competência de mais aquela máquina.
Apesar de tudo
procurou pôr em prática algumas das soluções propostas. Nenhuma resultou. Dois
meses mais tarde, quando acabou por desistir, o miúdo tinha já duzentas e
quatro cadeiras atrasadas e agora era a escola que ameaçava expulsá-lo se o
encarregado de educação não comparecesse a uma reunião com o conselho pedagógico
no dia tal às tantas horas.
Foi, claro.
E levou a
Conceição.
A reunião não
começou bem. Demonstrando a falta de savoir
faire e a memória eidética típicas das máquinas, os membros do conselho
pedagógico depressa trouxeram à baila a saída destemperada de dois meses antes,
e pareceram deliciar-se com a enunciação detalhada de todos os pormenores dos
sucessivos falhanços da aprendizagem do filho. Miguel depressa se começou a enervar,
depois a irritar e, quando Conceição lhe pousou uma mão no braço, naquele gesto
tipicamente feminino que pretende instilar calma num parceiro intimamente
cavernícola mas tem quase sempre o efeito oposto, explodiu:
— Se me
chamaram aqui para me esfregarem na cara todos os defeitos da minha família,
vou-me já embora! Mas é já!
A sua
tentativa para se levantar, porém, foi cortada pelo único membro humano do
conselho pedagógico, uma velha muito velha, cuja pele lisa e jovem e cabelo
perfeito denunciavam os efeitos de uma miríade de operações cirúrgicas e
tratamentos de beleza, mas cuja idade era evidente pelo modo cuidadoso como se
mexia e articulava as palavras.
— Calma, senhor
Prado, tenha calma. Estamos aqui para o ajudar, e principalmente para ajudar o
seu filho. Peço-lhe só um pouco mais de paciência. É que tem de compreender bem
a situação para podermos aplicar eficazmente a solução, percebe? Deixe os
colegas chegarem ao fim, por favor. E não se irrite, que não queremos insultá-lo.
Pelo contrário, vai ver.
Embora a
contra-gosto, Miguel voltou a instalar-se na velha cadeira almofadada que se
lhe amoldava imperfeitamente ao corpo.
— Está bem.
Desculpe. Continuem lá.
E continuaram,
fazendo uma lista das tentativas que ele tinha feito para resolver o problema.
Miguel ouviu, roendo-se por dentro, olhando Conceição de soslaio, perguntando a
si próprio se teria sido ela a fornecer aquelas informações à escola. Mas mal
sabia ele que o pior ainda estava para vir.
O pior acabou
por chegar sob a forma de uma descrição em que a reprovação conseguiu
transparecer mesmo na voz inexpressiva do andróide que a fez. Uma descrição que
apanhou ambos os pais completamente de surpresa. A descrição de uma tentativa
de fraude. Perpetrada pelo filho. E falhada.
Claro.
Só podia ter
falhado.
Parecia que o
raio do puto tinha tentado penetrar no sistema informático do Ministério,
usando um método que provavelmente teria sido obtido online, algures.
Felizmente (ou infelizmente, talvez), a técnica estava já obsoleta há ano e
meio e o Ministério rapidamente pusera em campo as contra-medidas indicadas. Não
demorara a identificar o responsável pela tentativa de intrusão. O Zé.
Miguel não
aguentou mais.
— E o filhinho
da mãe que não nos disse nada! Sabendo que tinha sido apanhado, continuou a
agir como se nada fosse! Ai quando lhe puser as mãos em cima! Vai…
— Ele não sabe
— interrompeu a velha.
— Como?
— Ele não sabe
que a intrusão não teve sucesso. Pensa que conseguiu entrar no sistema e dar a
si próprio passagem às cadeiras que os senhores não sabem que tem em atraso…
— … que nós não
sabemos que… O quê?! Não me diga que
são mais que duzentas e quatro!
— São duzentas
e vinte e três — esclareceu implacavelmente um dos andróides. — E hoje, segundo
os relatórios preliminares de que dispomos, deverão aumentar para duzentas e
vinte e cinco.
Conceição
levou a mão à boca, Miguel afundou-se na cadeira e mergulhou a cabeça nas mãos.
Aquilo não podia estar a acontecer. Não podia. Era impossível. Impossível!
Conceição foi
a primeira a recompor-se.
— Disse que estão
aqui para nos ajudar — disse com a voz trémula — embora eu não veja como. Isto
parece muito mau.
— É menos mau do
que parece — respondeu a velha com um leve sorriso. — Temos uma proposta para vos
fazer. Mas primeiro têm de compreender uma coisa: é verdade que o vosso miúdo
tem problemas graves de aprendizagem e que a sua formação ética é quase inexistente,
mas não é inteiramente desprovido de qualidades. A tentativa de intrusão nos
serviços do Ministério mostrou-nos duas coisas: que é capaz de mostrar iniciativa,
quando acha que poderá conseguir vantagens pessoais dela, e que consegue levar
outros miúdos a confiar nele e a fornecer-lhe algo de que precise. Compreendam
que não foi ele que arranjou o programa que usou na tentativa de fraude;
convenceu outro pequeno a arranjar-lho. Estamos até convencidos de que também não
foi ele a usá-lo, ou pelo menos de que não o usou sozinho, embora ainda não tenhamos
conseguido descobrir quem o ajudou nessa parte. Mas nem importa. Se concordarem
com o que vos propomos vamos transferi-lo para outra ala, onde ele terá outros
colegas, colegas de outra índole.
— Que ala? Que
índole? — perguntou Miguel, intrometendo-se na pausa que a velha fez para
respirar.
— Já lá
chegaremos. Deixe-nos explicar tudo primeiro. Temos de vos fazer compreender
bem que a proposta que queremos fazer é tanto do vosso interesse como do nosso,
o que garante à partida que faremos tudo o que pudermos para termos todos
sucesso com o vosso filho. Não vou entrar para já em pormenores. Digamos
simplesmente que se a escola for bem sucedida com o vosso filho isso nos poderá
trazer certas vantagens que neste momento nos fazem falta. Mesmo sendo este um
compromisso de longo prazo. E mesmo tendo nós, claro, outros candidatos
promissores, que estamos também a tentar preparar. Mas a verdade é que, ao
avaliarmos o vosso filho, chegámos à conclusão de que ele tem precisamente as qualidades necessárias
para chegar lá. Não será o melhor de todos, mas está perto. Compreendem o que
vos estou a dizer?
— Sim, mais ou
menos — disse Conceição, com um brilho de esperança a acender-se no olhar. — Não
percebo é todo este mistério.
— Dentro de um
momento compreenderá tudo. Ora bem: para conseguirmos atingir os nossos fins,
teremos de fazer alguns ajustes ao plano curricular do pequeno Zé. Propomo-nos
substituir a conclusão das duzentas e tal cadeiras que tem em atraso por um número
equivalente de créditos que, na prática, farão com que ele avance até ao ponto curricular
em que deveria estar neste momento. Ou seja: ficará sem nenhuma cadeira
atrasada. Soa-vos bem?
Miguel olhou
para Conceição, Conceição olhou para Miguel, este falou.
— Claro. Mas
continuo sem compreender este milagre. Nem o que a escola ganha com ele. Nem a
sua legalidade.
Quem respondeu
foi um dos andróides.
— O que a
escola ganha é influência, meu amigo. Quanto à legalidade, o nosso departamento
jurídico diz-nos que não é ilegal. Para o conselho pedagógico isso basta. O que
a vossa família ganha é evidente, portanto escuso de explicar. Em resumo, o
novo plano curricular concentrar-se-á em desenvolver as melhores qualidades do
vosso filho, a sua inteligência interpessoal, o seu espírito de iniciativa, o
seu carisma, etc. Poremos de parte o currículo normal. A aprendizagem de factos
sobre o mundo e o desenvolvimento da capacidade de tirar conclusões a partir
desses factos não será necessária. Queremos preparar o vosso rapaz para a política.
Para a política executiva, entenda-se, não para a teórica. Não temos interesse
nenhum nas minorias políticas, porque nunca será através delas que conseguiremos
acesso ao núcleo do poder. Apontamos ao centro, à maioria, e para lá chegarmos o
vosso filho é quase ideal.
Enquanto
Miguel e Conceição se recostavam nas cadeiras, embasbacados e chocados, a velha
voltou a falar.
— Sabemos que
não era a carreira que sonhavam para o vosso rapaz, estamos cientes de que é provável
que estejam a pensar na vergonha que sentirão quando tiverem de dizer aos
vossos familiares e amigos o que o Zé fará na vida, mas julgamos que ele será
feliz assim. Tem mesmo a personalidade certa. Independentemente de tudo o
resto, a função da escola é também promover a felicidade das crianças, não é
verdade?
O casal ficou
calado, a tentar digerir aquilo. A velha não.
— Então, que
nos dizem? — pressionou passado pouco tempo. — Aceitam?
Ainda levaram
algum tempo a pensar mas acabaram por aceitar. Claro. Afinal de contas, quem
sai aos seus não degenera.
Ou algo assim.
Mais interessante que o anterior, sem dúvida.
ResponderEliminarAcho que algumas informações sobre a tecnologia da altura ficaram "a mais", não eram necessárias.
E claro, é impossível não notar a crítica velada.
Gostei :)