por Tibor Moricz
A grande sala
onde os resultados do pleito eram observados tinha pouco movimento, além das
câmeras de TV, como era de praxe. Apenas dois ou três técnicos e o candidato
cujo mandato ainda prevalecia e que agora concorria à reeleição, disputando o
cargo de governador de Nova Jersey com outros concorrentes, esses fora dali, em
seus lóculos particulares, no aguardo dos resultados que lhes seriam
transmitidos através de suas IA pessoais.
John Mitchell
aguardava o momento em que procederia com o ritual repetido de quatro em quatro
anos desde que iniciara carreira política. Aprendera que sua ascensão vitoriosa
advinha de sua férrea vontade e determinação, além da oratória e de seu poder
catalisador.
Conhecia os
concorrentes desse pleito pelos nomes, mas pouco ou nada da história de cada
um.
Erick Bormann,
professor universitário; Robert Silverberg, espaçonauta; Clinton Rodriguez, um
obscuro técnico em navegação espacial; Frederick Brown, diretor de um
importante conglomerado do setor de alimentos sintéticos e Ashley Lavendish, um
garoto recém-saído da universidade.
Uma parede
metálica zumbiu. De sua face aparentemente lisa e isenta de aberturas abriu-se
um vão. Canaletas surgiram e abaixo delas uma plataforma circular entremeada
por roturas equidistantes. Um dos técnicos fez uma mesura, pediu licença e se
aproximou carregando consigo uma bandeja com várias bolas coloridas.
Entregou-as a John e então se afastou com outra mesura.
John apanhou
uma delas, a vermelha, manuseou-a com carinho, apalpou-a como se fosse uma
amante antiga e com a qual jamais se aborreceria e a empurrou por uma das
canaletas. Ela desceu até a plataforma circular, quicou brevemente e, atraída
pelo magnetismo, rolou direto até uma das roturas e nela se infiltrou. No
momento em que desapareceu por ela, a rotura se fechou e as demais foram
projetadas de forma a eliminar o vão agora ocupado. Uma luz azul acendeu num
painel autorizando novo arremesso e ele, então, jogou a bola verde. Executou
todo o procedimento durante mais algum tempo, sempre jogando bolas coloridas
diferentes. Cada uma delas se encaixou numa rotura.
Enquanto
realizava o ritual, observava os resultados que iam sendo apresentados numa
curva de Gauss permeada de números. Franziu o cenho ao se aperceber que seus
resultados se aproximavam perigosamente dos números de outro candidato cujo
nome não lhe era apresentado no momento. Pela primeira vez não se viu senhor
absoluto dos números desde o início de sua carreira política.
Sabia que as
bolinhas eram diligentemente arrastadas para a rotura que deveriam ocupar por
atração magnética, e essa obedecia aos dados mnemônicos obtidos no pleito. A
pior parte, então, chegara. Apanhou a última bolinha, de cor preta. A temida, a
odiada por todos. Ela representava o voto dos indecisos. Era ela, neste
momento, que poderia lhe dar a vitória por maioria absoluta — já que mantinha
do segundo colocado uma margem percentual relativamente segura — ou lançá-lo
num segundo turno indesejado. Apertou-a, alisou sua superfície metálica
reflexiva e lançou-a pela canaleta. Viu a bolinha quicar várias vezes,
rodopiando ao redor de algumas aberturas, sem se decidir por nenhuma.
Ele sabia em
qual. Ele sempre soube em qual. Mas a bolinha odiada deslizou caprichosa,
passou por cima da rotura em que deveria ter se enfiado e foi embocar em outra.
Encerrado o
ritual, sorriu contrafeito, sentindo os nervos em polvorosa. Estalou as juntas
dos dedos e se dirigiu para o painel central, onde os dados resultantes eram
sendo processados.
“Setor Nova
Jersey. Cidade de Nova Jersey. Zona quarenta e oito. Eleitorado ativo: trinta e
dois milhões, cento e vinte e quatro mil, setecentos e oitenta e nove.
Resultado do sufrágio: ausência de maioria. Segundo turno exigido.”
Franziu o
cenho e apertou os lábios até que perdessem a cor. Estivera toda a vida política
esperando por isso. Pelo momento em que veria que a maioria absoluta não fora
atingida. Sempre temera esse acontecimento. Levou uma das mãos ao rosto e
massageou-o vigoroso.
Conquanto as
bolinhas pudessem demonstrar a um observador externo um processo apoiado na
mais absoluta aleatoriedade, isso não era verdadeiro. Evidente que a pantomima
poderia ser descartada, resumindo o pleito a poucos segundos de apuração
eletrônica. Mas a malta de animais da cidade-baixa era
alimentada com a transmissão direta da decisão eleitoral, através de telões
públicos, e as bolinhas davam-lhes o show adequado.
Todo o sistema
era baseado em técnicas mnemônicas, em dados obtidos em sufrágios anteriores,
dados projetados através de estimativas eleitorais fundamentadas na intenção de
voto futuro e em dados obtidos por extração psíquica, através de implantes de
captadores anímicos no lobo frontal, de onde os eleitores ativos eram
controlados extrassensorialmente. A aleatoriedade residia apenas na maldita
bolinha preta, esta a única em que os campos magnéticos não exerciam grande
influência; sendo impulsionada pela indecisão do eleitorado, movia-se livre de
influxos, na mesma medida do grau de indecisão auferido e inserido no software
eleitoral.
Por isso, por
causa de uma bolinha que quicara e rodopiara, entrando na rotura errada, que a
eleição chegou a uma pseudovitória sem maioria absoluta. Por causa disso que
deveria disputar corpo a corpo o segundo turno; esse sem eleitores, sem
votantes, sem votos, sem intenções.
Mesmo assim, a
despeito de todo o sistema de elevada tecnologia e ciência, era o que os
técnicos chamavam de Variável da Imponderabilidade o que vinha lhe
garantindo reeleições constantes pelos últimos vinte anos – a bendita, nesse
caso, bolinha preta, que carregava a pecha. Em todas obtivera a maioria
absoluta, vencendo os indecisos e deixando para trás concorrentes diretos.
Exercia o
mandato governando o Setor Nova Jersey com mão de ferro. Já não era mais um
garoto. Obtivera a primeira vitória aos vinte e oito anos. Aos quarenta e oito
já estava cansado, mas parar era opção que ainda não admitia.
Esse
preocupante resultado fez retroceder suas lembranças alguns anos, quando a
possibilidade o assustava menos. Quando era mais forte, vigoroso e temerário.
Os anos passados lhe acrescentaram disciplina, sensatez e equilíbrio. Virtudes,
sem dúvida, mas ineficientes para a campanha em contato direto. O jovem
temerário de alguns anos atrás agora sentia as pernas moles e uma sensação
assustadora de fim de carreira.
Sentou-se numa
poltrona e ficou parado, observando o painel central. As holoimagens, a
informação de mais uma eleição passada. Estar numa situação de não-maioria
exigia a continuação do pleito, na forma de batalhas físicas no intuito de
sobrepujar o oponente. Só um poderia governar o setor. Se o eleitorado está
dividido, deve-se resolver a sua indecisão sem onerar o gigantesco maquinário
eleitoral. Sem novas campanhas.
Olho no olho.
Ou assim, sempre que possível.
Colocou três
analgésicos na palma da mão. Os fez rolar de um lado ao outro enquanto enchia
um copo com água. Engoliu-os imaginando porque fazia isso se não estava com dor
de cabeça. Rotina antiga. Sempre se questionava e sempre voltava a repetir o
mesmo gesto. Desabou sobre o colchão de ar. Ficou olhando o teto por alguns
segundos, incerto do próximo passo. Ou um banho rápido e restaurador, ou uma
conexão neural partidária. O banho era premente, mas as alternativas nesse
segundo turno o angustiavam. Saber por que não havia obtido maioria era
imperativo. Levantou-se e se arrastou até a mesa. Sentou-se, puxou um conector
retroencefálico e encaixou-o na cabeça, sendo tomado por uma luz alaranjada que
o acobertava fazendo desaparecer as suas feições.
— Conexão
neural partidária negada. Protocolo aponta perda de privilégios. — Charlie, sua
IA pessoal, comunicou numa voz monocórdia. A voz isenta de subtonalidades
demonstrava uma tentativa curiosa de parecer distante do problema, como se ele
não o afetasse. Retirou o conector, estalou as juntas do pescoço, franziu o
cenho e foi para o banho. A banheira estava preparada. Água tépida, sais e
borbulhas. Mergulhou, ficando apenas com a cabeça de fora.
— Talvez
tenha, em breve, novo morador para servir, Charlie.
—
Possibilidade ainda fora de cogitações, John.
— Perda de
privilégios é o primeiro sinal de que as coisas não estão indo bem.
— Nada que uma
campanha bem planejada de segundo turno não possa reverter.
— É isso o que
me preocupa. Sem a conexão neural partidária não tenho como saber quem é meu
oponente. Como implantar uma estratégia vencedora se nem sei quem vou
enfrentar?
— Ashley
Lavendish. 28 anos. Natural de Ohio. Cabelos e olhos negros. Primeira campanha.
Seu pai foi Senador por Michigan oito vezes até cair num segundo turno.
Trata-se de uma pessoa voluntariosa, cheia de ideais. Análises extrassensoriais
mostram que o eleitorado se identificou com suas características progressistas,
sua juventude e, sobretudo, pelo currículo familiar que ainda aponta avôs e
bisavôs bem sucedidos na carreira política. Formou-se em Psicossociologia e
Administração de Massas. Participou de Congressos em Oslo, Bonn, Lisboa,
Hokaido e Vladivostok. Condecorado com a “Ordem da Juventude Promissora” por
três vezes.
John estava
perplexo. Charlie, sempre um passo à frente, antecipando suas necessidades mais
imediatas. Enfrentaria, então, o jovem que não saíra dos cueiros.
— Quando
acessou essas informações, Charlie?
— Acompanhei o
processo e extraí a quantidade delas que me foi possível antes que seus
privilégios fossem suspensos, John.
— Conheci o
velho Lavendish. Um homem determinado. Um político competente. Um opositor encarniçado.
Sua estratégia para o segundo turno foi um desastre. Sem dúvida a idade pesou,
no fim das contas. Sabia que tinha um herdeiro de genes, mas nunca me preocupei
em saber quem era e o que fazia. Onde ele está residindo?
— Residência
fixa na zona 36 de Nova Jersey. Herdou boa parte dos privilégios do pai e leva
uma vida confortável. Duas herdeiras de genes incubadas na Fundação Herdeiros
de Genes Para Uma Vida Melhor. Planeja uma viagem ao final das eleições e
pretende resgatar as crianças na volta, já amadurecidas e com idade adequada
para a primeira escola. E com todos os certificados de garantia que seus
privilégios lhe garantem.
— Herdeiros de
genes para seguirem a herança política da família.
— Trata-se de
meninas, John.
John ergueu os
sobrolhos, estupefato. Fazia décadas que haviam afastado as mulheres de todas
as funções de comando ou que exigissem um mínimo de autossuficiência. Já, à
época, elas pouco ou nada acrescentavam, relegadas que eram ao trabalho
doméstico. Estabelecera-se um patriarcalismo ferrenho e corrosivo, aonde mentes
doentes conduziram-nas cada vez mais para uma exclusão social absoluta. O que
motivara os antigos a tomarem tal decisão lhe era desconhecido. A despeito
disso, mesmo considerando a condução dessa política — quando ainda jovem e
voluntarioso estudante — um equívoco, fora elemento fundamental na manutenção
da lei no momento de sua primeira eleição vitoriosa. Com rara habilidade
conseguira reunir ao redor de si um grupo de congressistas favoráveis à
manutenção das mulheres como cidadãs de última classe e, desde há vinte anos,
vinha garantindo que isso não se modificasse. Mesmo sofrendo feroz combate por
parte do Senador Lavendish, que pretendia derrubar a lei e devolver a elas o
estatuto de cidadãs livres.
Por fim, dera
por si impregnado na crença de que elas nada valem e para nada servem. Condutor
obstinado das leis primeiro promulgadas por artífices políticos do passado.
Considerava-as
necessárias, sem dúvida, mas ao trabalho mecânico em linhas de produção, a
atividades sexuais recreativas, a testes laboratoriais, experiências em
indústrias farmacêuticas, a estudos de várias espécies, a tudo... Menos para
elegibilidade, seja ao cargo que fosse. As mulheres eram apêndices
dificultosamente carregados pela evoluída sociedade contemporânea. Ponderava
sugerir leis que permitissem eliminá-las gradativamente, com a sobrevivência,
apenas, daquelas necessárias para o divertimento.
— Esse rapaz
quer duas meninas para quê? Perversões sexuais pedofílicas e incestuosas? –
Perguntou, intrigado, mas nem um pouco incomodado com a possibilidade.
— Desconheço
seus objetivos, John.
John afundou
na água morna da banheira e permaneceu mergulhado por alguns segundos. Voltou à
superfície com a mente clara, certo de sua estratégia para esse segundo turno.
— Descobriu o
caminho, John? — Charlie quis saber, atento às suas emanações extrassensoriais.
— Descobri.
Está decidido que minha estratégia primará pela falta dela. Esse jovem é
voluntarioso, mas inexperiente. Deve estar lucubrando inúmeras planificações de
ação e imagina que estou fazendo o mesmo. É o meu primeiro segundo turno, mas
já assisti a muitos, o suficiente para adquirir know-how que esse,
esse... Ashley, não tem. Movimentos de ataque erráticos provocam confusão no oponente.
Ele, o oponente, sempre espera um embate inteligente. Vou confundi-lo.
— Acha que
isso é o suficiente?
— Claro que
não. Isso e mais uma faca no coração. Ou um tiro na cabeça. Ou um pescoço
quebrado. Ou tudo isso junto. Este não é meu último mandato, Charlie. Não,
mesmo.
Fez borbulhas
na água enquanto lamentava o decreto antigo que determinava que as campanhas de
segundo turno deveriam ser resolvidas no campo de batalha. Abandonavam-se novas
rodadas de discursos e de panfletagem e abraçava-se a tática de atribuir a
vitória ao mais forte. Admitia que a brutalização do eleitorado na cidade-baixa
formara eleitores que procuravam mais do que um especialista em oratória;
pediam candidatos fortes e capazes de convencê-los não só pelo vigor do
argumento, mas também por força de estratégia e no emprego da violência.
Respirou fundo,
deplorando ainda a situação, e procurou, então, relaxar.
Observou a
urbe das alturas onde ficava seu lóculo de nível três, governador do setor Nova
Jersey, zona quarenta e oito. A quase oitocentos e cinquenta e quatro metros do
nível do solo. O pináculo onde se localizava era rivalizado por centenas de
outros, todos altíssimos. O maior de todos ficava no setor Nova York, zona
dezoito, com mil quatrocentos e cinquenta e dois metros de altura. A
cidade-alta era unida por várias vias de conexão, um fantástico emaranhado de
túneis elevados, tubulares, ora transparentes, ora opacos, que serviam para
ligá-los todos, sem que precisassem descer ao nível do solo — ou cidade-baixa —
para transitar entre edifícios. Em meio ao caos tubular, dezenas de hovercarros
flutuando silenciosos no vazio, transportando gente e carga.
Podia ver a
abóbada terrestre, recortada pelo entrelaçamento das vias de conexão, e as
nuvens e as camadas cinzentas de poluentes que enegreciam a cidade-baixa, mas
não as pessoas, menores que formiguinhas a essa distância. Mas sempre se
flagrava ali, hipnotizado, observando os intrincados arabescos formados pelas
ruas de tráfego intenso.
Esse período
entre campanhas sempre se mostrava tranquilo, sem reuniões, sem decisões
importantes, sem chamados internos, nem disputas partidárias por benesses
públicas... Ficavam todos em seus lóculos, ruminando os acontecimentos futuros.
Sempre, em todos os segundos turnos, fossem eles ligados a quem fosse.
Enquanto não
se decidia o vencedor do turno, nada acontecia.
Claro que
existiam decisões quando surgiam assuntos de máxima importância, como assassinatos
de personalidades públicas, atentados terroristas, desastres naturais,
escândalos sexuais (embora fosse difícil enquadrar qualquer um num escândalo
dessa espécie; os tabus tinham caído) ou de qualquer outra natureza envolvendo
personagens do primeiro escalão.
Afastou-se da
janela com algum esforço. Eram dez horas da manhã e a campanha de segundo turno
começaria depois de algumas horas, quando deveriam se misturar à turba, na
cidade, um em busca do outro, seguindo instruções nem sempre precisas — porque
propositalmente embaralhadas — de suas IA pessoais.
A iminência do
confronto lhe fazia formigar as mãos e os pés. A frequência cardíaca estava
alterada, atingindo cento e vinte batidas por minuto. A pressão arterial
chegava a quinze por nove. Seus olhos procuravam por qualquer coisa e por nada,
indo de um lado a outro no lóculo, agitados. Estava com sede e não estava.
Estava com fome e não estava.
Queria matar.
Não queria ser morto.
Caminhou até
uma mesa circular, simetricamente arrumada entre duas poltronas de couro de
foca, caríssimas em virtude da extinção desses mamíferos. Sobre ela, duas
pistolas carregadas e um punhal. Verificou as armas pela enésima vez.
Levantou-as, sopesando-as, e as recolocou sobre a mesa.
Irritava-o a
proibição de uso do armamento evoluído da cidade-alta, dos rifles de plasma,
das armas de ultrassom. Sempre concordara que essa tecnologia jamais poderia
cair nas mãos dos habitantes da cidade-baixa, mas a iminência do embate corpo a
corpo o fazia rever conceitos. Seria excelente se pudesse carregar apenas uma
delas. Guardada sob o casaco. Diminuiria esforços e o pouparia de manusear
artefatos obsoletos cujo funcionamento mecânico e a pouca efetividade só
tornariam a disputa ainda mais difícil.
Bufou,
irritado, e desabou numa das poltronas.
— Faltam ainda
duas horas e quarenta e oito minutos para o início do embate. Por que não dorme
um pouco, John? — perguntou Charlie, irritantemente calmo, como se fosse, esse,
um dia como outro qualquer.
— Porque não
conseguiria mesmo que tentasse — respondeu, num murmúrio mal-humorado.
— Posso
induzi-lo a um sono programado e acordá-lo dois quartos de hora antes de sua
saída, se preferir — insistiu a IA.
— Não,
obrigado – respondeu John, com firmeza. — Prefiro ficar acordado arquitetando
as horas vindouras.
— Disse que
não haveria planificações, John.
— Mesmo o caos
precisa de alguma ordem.
Charlie não
respondeu, para sua satisfação. Não era hora para diálogos vazios. Dentro de
poucas horas percorreria as ruas caóticas da cidade, trocando respirações com
uma malta de cidadãos miseráveis e adoentados devido ao ar poluído. Homens de
classes inferiores, sem privilégios para a aquisição de filtros nasais. Iria
para as ruas vestido como um deles, um homem sem privilégios, um proletário
igualmente adoentado, igualmente condenado a uma vida sem conforto e sem
esperanças.
Com sorte não
precisaria fazer muito esforço. Localização rápida, aproximação, confronto
aproveitando o fator surpresa. Um ou dois tiros com boa pontaria e tudo acabado.
O corpo do herdeiro de genes do falecido Senador Lavendish ficaria nas ruas
para alimentar a escória. Roubariam suas roupas, suas botas, suas armas, seus
dentes e unhas, os cabelos, os olhos, os órgãos internos. O resto ficaria
jogado na sarjeta para os ratos.
Sorriu com a
perspectiva. Era esperto o bastante para saber que projetava uma caçada feliz
sem nenhuma certeza disso. Impossível refrear o desejo de ver tudo acabar bem.
De se ver empossado para mais um período de governança. Mas as armas sobre a mesa
o lembravam de que o tal Ashley também possuía armamentos iguais e talvez
soubesse usá-los. A ideia de um tiroteio, com projéteis zunindo, o punha
nervoso. Não queria ser um alvo fácil. Não podia ser um alvo fácil.
Charlie o
instruía, muitas vezes repetindo explicações que estava cansado de conhecer,
embora jamais tivesse utilizado roupagens semelhantes. Despiu as roupas de
polímero especial, flexíveis e confortáveis, e vestiu andrajos de tecido
grosso, rudes e pesados. Calças incômodas, camisa larga e casacão preto cuja
gola alta podia cobri-lo até a nuca. Calçou botas de couro sintético, surradas
como se já tivessem pertencido a muitos homens — coisa que não duvidava nem um
pouco.
Cabelos em desalinho, óculos escuros, rosto
suado, mãos protegidas por luvas, armas nos bolsos do casaco. A faca presa na
cintura. Com um spray, tingiu de castanho escuro o cabelo das têmporas.
Alguns enchimentos no rosto ajudaram a esticar a pele e lhe dar uma aparência
mais jovem. Ao se olhar no espelho não se reconheceu. E isso era bom.
Ele e Charlie
testaram algumas frequências de contato, asseguraram-se de que nenhum incidente
os desconectaria e então, trêmulo de ansiedade e nervosismo, viu-se pronto para
sair. Apalpou os bolsos, certificando-se de que ambas as pistolas estavam
guardadas, depois as retirou, uma a uma, e verificou seus pentes. Carregados,
claro. Tocou a faca, sentiu o gume através do tecido e respirou fundo tentando
controlar a ansiedade.
Fez um gesto
desnecessário para o interior do lóculo, como se estivesse se despedindo de
alguma pessoa, um ser físico qualquer, e se dirigiu a um dos elevadores.
Aguardou a sua chegada e assim que esse abriu as portas, titubeou. Descer e se
misturar ao povo era assustador. Essa miscigenação o punha quase fora de
controle.
Deu dois
passos não muito decididos para dentro, virou-se de frente para a entrada e
assistiu as portas se fecharem silenciosas. O elevador despencou numa
velocidade vertiginosa, vencendo todos os oitocentos e cinquenta e quatro
metros em duas dezenas de segundos. Quando chegou, seus olhos estavam
injetados, a respiração ofegante, as mãos trêmulas e agarradas ao longo casaco.
Para além do
elevador uma espécie de zona fronteiriça o separava da urbe. Amplo salão, vazio
e de alvura desconcertante, tão livre de partículas, tão inócuo, tão puro que
se sentiu um pária naquelas roupas, atravessando o átrio até a câmara de
descontaminação. Entrou nela e se viu fechado por longos e assustadores
momentos. Outra porta se abriu expondo-o ao mundo exterior e lhe revelando o
que só aceitava assistir lá de cima, longe o suficiente: o caos.
Milhares de
pessoas caminhando sem direção. Empurrando-se umas às outras, chocando-se.
Gritos se misturavam ao bramir de motores a combustão, a fumaça da densa névoa
tóxica proveniente das centenas e centenas de chaminés das fábricas se
misturando aos canos de escapamento que liberavam monóxido de carbono e dióxido
de enxofre. Veículos automotores movidos por combustível fóssil, brigando por
espaço com ciclo-riquixás, uma praga que se alastrara pela América como um
câncer havia mais de cinquenta anos. Homens de olhares perdidos, cabisbaixos,
muitos segurando lenços diante das bocas, tossindo, lacrimejando, fazendo
roncar os pulmões tomados por enfisema.
Havia comércio
intenso. Venda de alimentos, os mais estranhos e repugnantes. Vendas de
aparelhos eletrônicos, muitos obsoletos, outros novos evidenciando um mercado
de contrabando, mesmo que ainda frágil. Homens alardeando eventos, mostras,
shows, festins, orgias, combates entre lutadores tísicos, mas que se expunham à
morte em troca de alguns trocados ou um punhado de comida. Placas e luminosos
espocando as luzes nesse cenário de intensa troca de ofertas.
Caminhava
entre a turba, ignorado por todos. Cabeça baixa, olhando para o chão imundo,
cuidando para não aparentar uma imponência incomum entre os mundanos. Ouviu
choros e lamúrias. Risos e praguejamentos. Assistiu a duas tentativas de
assalto fracassadas e a uma bem sucedida. Algumas brigas estouravam, sem
motivos que lhes dessem ensejo. As pessoas se esbarravam e partiam,
transtornadas, para agressões físicas. Veículos ignoravam as pessoas, as
pessoas ignoravam os veículos, atropelando-se. Identificou homens que
aparentavam certo controle sobre a multidão e eram respeitados. Esses escondiam
apetrechos sob os casacos. Drogas ou armas. Ou ambas. Prédios decadentes
exibiam entradas escuras, protegidas por leões de chácara.
Agarrou a
coronha de uma das pistolas. Prendeu-se a ela como um náufrago que se agarra a
um pedaço de tábua que boia em mar revolto. Desviava-se das pessoas temendo um
encontrão que pudesse resultar em protestos, quase todos violentos. Sentia no
ar uma tensão sempre constante. Todos saíam de suas casas, prontos para morrer
ou matar. Esse era o seu povo. Eram todos esses os seus eleitores. Eram os
responsáveis pela sua administração.
Assistiu a uma
mulher sendo arrastada pelas pernas. Ela grunhia e tentava agarrar os
passantes, que se esquivavam num dar de ombros. O homem que a puxava vez ou
outra se voltava para chutá-la. Noutro momento contemplou dois homens numa luta
bizarra, agarrados, rolando pelo chão. Um deles enfiou indicador e médio nas
órbitas do outro, perfurando-lhe os olhos.
Afastou-se
enojado, pronto a vomitar. Aquele mundo não era o seu. Aquele lugar era a
indigência absoluta. Tantas vezes tentou que aprovassem a formação contingente
de tropas para irem às ruas. Tantas vezes tentou que essas forças policiais
provisórias descessem para instaurar a ordem. Seria um massacre, mas um
massacre necessário. Para limpar as ruas seria necessário eliminar pelo menos
um terço da população. Isso resultaria em pânico e medo. Medo traz respeito.
Respeito traz paz. Mas um lobby de fabricantes poderosos alegou que isso
tiraria mão de obra das ruas, tornaria a obtenção de matéria prima mais difícil
e encareceria o produto final, prejudicando sobremaneira os cidadãos da
cidade-alta. Os da cidade-baixa não precisavam de nada, a não ser do ódio com
que se alimentavam e do qual os fabricantes se aproveitavam. O ódio alimenta os
músculos. Isso auxilia o trabalho braçal.
— Zona
quarenta e cinco, Park Avenue — disse Charlie na sua mais característica
atonalidade.
— Ponto de
encontro? Local onde está Ashley? — inquiriu John.
— Presumo que
sim, John.
— Direção...
Droga! Não conheço essa cidade. Onde fica essa rua?
— Oitocentos
metros em frente.
Ergueu a cabeça,
observou a redondeza com mais atenção. Identificou o rumo, embora houvesse
enormes dificuldades nesse sentido. Existia uma incrível poluição visual, fora
a fumaça densa que envolvia a todos. Placas de tamanhos variados, néons
brilhando, informações demais provocando confusão mental. Seguiu pela rua,
evitou um choque com um cidadão embriagado, espremeu-se contra uma parede úmida
e suja e caminhou assim, o mais distante possível de qualquer contato. O mais
distante possível daquela gente que preferia mil vezes ver morta que viva.
Oitocentos
metros era uma dimensão que dificilmente teria condições de auferir durante a
caminhada.
— Seiscentos
metros e se aproximando, John.
Recusou dois
convites para entrar em lojas cujas fachadas exibiam fotos impudentes de mulheres
nuas. Algumas delas modificadas genética ou cirurgicamente. Algumas com três
seios, outras com lábios vaginais tão grandes quanto ventarolas, rabos de
equinos, pelos no corpo, olhos felídeos, escamas no lugar da pele, garras nas
mãos, dentes pontiagudos. Um bizarro circo de horrores.
Evitou várias
tentativas de aproximação de vendedores de engenhocas; ignorou olhares de
súplica tanto de homens famintos quanto de mulheres, essas geralmente presas
por argolas e acorrentadas. Sabia que, a qualquer aproximação, esses olhares de
súplica se transformariam em ódio e não hesitariam em estripá-lo, se pudessem.
As mulheres da cidade-baixa eram animais. As da cidade-alta não o eram menos,
mas tinham um condicionamento que fazia com que obedecessem à menor vontade de
um homem.
— Quatrocentos
metros e se aproximando, John.
Viu-se diante
de um terreno cheio de escombros. Qualquer coisa maior que uma loja, menor que
um prédio, havia desabado e não fazia muito tempo. Vários vagabundos se
amontoavam em suas reentrâncias, ou praticando contravenções ou
licenciosidades. Num desvão flagrou vários deles estuprando uma jovem de idade
indefinida. Não pôde deixar de parar por alguns instantes para assistir. Não
era uma cena bonita, mas possuía uma carga sexual tão intensa que ficou
excitado. Deixou-os para trás, e também aos gritos de terror — que se
confundiam aos de prazer —, e prosseguiu.
Mas por poucos
metros. Uma saraiva de disparos fez erguer o chão craquelado do calçamento.
Alguns homens gemeram, outros guincharam, enquanto seus corpos eram perfurados.
Iniciou-se uma debandada geral, correria insana. Os disparos prosseguiam,
batendo, perfurando, ricocheteando, enquanto ele erguia os braços, assustado,
tentando se proteger.
Não sabia se
corria ou se esperava. Se gritava ou emudecia. Nessa indecisão que poderia ter
sido mortal, viu-se, súbito, agarrado e arrastado para o chão por um homem que
procurava protegê-lo. Ainda estava atônito, muito mais pela demonstração de
heroísmo e humanidade do homem que pelo ataque súbito de que fora vítima —
tinha certeza disso — quando se deu conta de que o sujeito se lançara sobre ele
para roubá-lo e não para outra coisa. Abandonou a perplexidade e se deixou
tomar pela injúria. Os balaços ainda espocavam quando se desgarrou do estranho
e se levantou, correndo para o meio dos escombros, em busca de alguma proteção.
Agachou-se
atrás de uma laje, o coração aos saltos, quando Charlie se manifestou.
— Sem
planos... Confundir o adversário...
John respirou
fundo várias vezes, apalpando os bolsos para se certificar de que não fora
roubado.
— Sem ironias,
Charlie, por favor.
Empunhou a
pistola, mantendo-a bem junto ao corpo. Espremido contra o concreto. As rajadas
terminaram segundos depois.
— Como ele me
localizou, Charlie? Você não disse zona quarenta e cinco, Park Avenue?
— É bastante
provável que lhe tenham passado o endereço em que você se encontrava naquele
momento, John. Não fica difícil presumir que se encontrariam no meio do
caminho.
— Então como
fui identificado?
Charlie
manteve-se calado. Era uma pergunta para a qual não tinha resposta. A confusão
da praça acabou tão logo os disparos se encerraram. Impressionou a John a forma
como todos voltavam às suas rotinas, sem questionamentos. Como se guerrilhas
dessa espécie fossem mais do que comuns por aquelas paragens. Virou-se com
cautela e olhou para o lado em que estava quando tudo começou. Dois homens
atingidos eram revirados por vagabundos. Ergueu-se devagar. Enfiou a mão no
bolso do casaco, sem, contudo, abandonar a arma. Caminhou na direção de onde os
disparos se iniciaram e avaliou as redondezas. Não precisou de muita esperteza
para descobrir que os tiros tinham sido efetuados de um pequeno prédio de dois
pavimentos.
— Mais que me
identificar, Charlie. Ele montou uma emboscada. Sabia que passaria por aqui e
me aguardou em uma dessas janelas — afirmou John. — Quero saber como ele
conseguiu isso.
Charlie se
manteve calado. John perscrutou à sua volta. Animais vociferavam, cheirando o
ar, sentindo nele o odor de sangue. O mesmo que estava esparramado na calçada,
esvaído dos corpos agora quase estripados. Ponderou que o atacante ainda estava
no prédio. Uma alternativa era entrar, mas, lá dentro, estaria em desvantagem.
Não conhecia o lugar — ao contrário do opositor — e se arriscava a ser
atingido. Ficar do lado de fora? Parado, no aguardo? De olho nas janelas?
Espreitando a entrada até que algum suspeito surgisse?
Estava
perplexo por ter sido tão facilmente reconhecido. Ainda mais perplexo pela
evidente emboscada. Nada fazia sentido. Disfarçado, se passava por um cidadão
qualquer dessa cidade imunda. Não havia nada nele que o identificasse como um
morador da cidade-alta.
— Charlie? —
chamou.
— Charlie? —
tentou de novo.
— Setenta
metros à sua direita. Subindo a rua a passos largos — informou Charlie momentos
depois.
John virou-se
e caminhou rápido na direção indicada. Procurou com os olhos pela pessoa que
seria Ashley, mas a multidão que se movia, entrecruzando-se, tornava qualquer
tentativa de identificação quase impossível. Arma firme na mão, sangue correndo
rápido pelas veias. Então viu. Ou não viu. Pensou ter visto. Teve quase
certeza. Palpite ou não. Mas tinha grande chance de estar certo. O homem se
movia com força e determinação, mãos enfiadas nos bolsos do casaco, ritmo
impassível. Um gorro cobrindo-lhe a cabeça. Tentava se aproximar quando o
suspeito se virou.
Foi só um
instante. Um pequeníssimo segundo. Mas vislumbrou um rosto emoldurado por
óculos escuros largos. Boca de lábios finos. Um sorriso leve que denunciava
reconhecimento.
Começou,
então, a perseguição.
Antes se
preocupava em não ser identificado. Preocupava-se em parecer um habitante
local, tão desinteressante quanto qualquer outro. Mas agora corria desvairado
pelas ruas, no encalço do jovem Ashley Lavendish, fazendo tudo ao seu alcance
para interceptá-lo e matá-lo. Isso se suas pernas e seu fôlego permitissem.
Iam, ambos, trombando com vários transeuntes. Entravam e saíam de ruas e
avenidas. Pulavam sobre veículos automotores, abalroavam ciclo-riquixás, desviavam-se
de obstáculos, de pessoas irritadas, de embriagados, de vivos-mortos, Charlie
fazendo endorfinas serem liberadas, facilitando a corrida, dando a John uma
resistência que em situação normal jamais teria.
Foi então que
John parou, exausto.
— Onde estou,
Charlie? — perguntou enquanto tentava recuperar um pouco do fôlego. A
aglomeração da cidade havia ficado para trás. Encontrava-se num território mais
aberto, poucos prédios, muitos terrenos baldios. Terra seca e pedregosa. Nada
da antiga mata que cobria a região. Vegetação de qualquer espécie só era
encontrada em latitudes distantes. Viu uma ratazana correr uma dezena de metros
mais à frente. Quase do tamanho de um cão, a desgraçada.
Duas centenas
de metros adiante, após um largo terreno pedregoso e acidentado, o rio Hudson
corria devagar, emanando seus eflúvios de podridão. Olhou para o céu e foi
contemplado com uma visão cinza escura, própria da poluição intensa que os
cobria como um manto de morte e, além dela, o nada. Nenhuma via de conexão
interligando edifícios altíssimos. Voltou-se e procurou pela densidade da
cidade-alta do Setor Nova Jersey, assim como pela densidade do Setor Nova York.
A ausência dessa densidade — a despeito de alguns tentáculos que se estendiam
de uma cidade à outra —, nessa região limítrofe onde se encontrava, o
maravilhou. Apenas hovercarros fazendo a conexão entre setores nem tão
distantes, realizando o transporte e o comércio, sem que qualquer pessoa fosse
obrigada a descer até as cidades-baixas.
— Zona
dezoito, Avenida 25 em Port Imperial. Região fronteiriça.
Procurou pela
Ponte Lincoln sobre o rio e a viu, distante. Substituía o túnel que fora
destruído num terremoto fazia mais de trinta anos. Uma boa caminhada e,
passando por ela, entraria no Setor Nova York, território neutro, onde não
poderiam se confrontar. Mas essa possibilidade lhe parecia um disparate.
Recurso de alguém certo da derrota. Não era o seu caso.
— Identifique
a periferia, Charlie. — Se havia coisa que aprendera nos últimos minutos era
que seu oponente tinha mais cartas na manga do que deveria. Fora surpreendido
numa emboscada antes, nada impedia que o fosse de novo. A corrida extenuante
para um lugar tão desolado podia não ser eventual.
— Galpões e
armazéns desativados. Repositórios de produtos da indústria moveleira,
automobilística, farmacêutica, têxtil, alimentícia, agronômica, importados
diversos. Alguns da área pesqueira e náutica, mais precisamente de antigos
clubes, desmoronados.
John se
deslocou para junto da parede de um armazém e parou. Uma brisa leve soprava,
trazendo consigo o cheiro desagradável do rio. Tantas reentrâncias, portas
semiabertas, entulhos formando montes, carcaças abandonadas de antigos
veículos. Muitos lugares para se esconder. Sacou a arma e foi se esgueirando
com cuidado, ouvidos atentos a cada ruído, olhares agitados, tentando abarcar o
tudo. Uma lata caiu e rolou numa montanha de detritos. Atrás dela um vulto se
moveu apressado. Ele apontou meio sem jeito e puxou o gatilho. O estampido agrediu
seus ouvidos. O tranco o assustou. O projétil se perdeu na imensidão.
— Maldito
engenho antiquado! — praguejou. A mão ainda erguida, a arma apontada para
qualquer coisa. Mais ruídos. Desta vez à sua esquerda. Virou-se, rápido. Nada a
não ser escombros do que fora, um dia, uma construção qualquer. Então um estalo
repercutiu atrás dele, mais distante, uns vinte metros. Uma porta rangeu...
Folhas metálicas se esfregando umas nas outras. Segurou a pistola com ambas as
mãos e avançou. O armazém estava aberto. Dentro dele, penumbra.
Entrar ou não
entrar? A dúvida fez queimar uma úlcera antiga. Era uma emboscada, claro que
era. Estava sendo manipulado. Pensara que seria fácil. Ledo engano. Mas a
perspectiva de ficar lá fora não o agradava. Era entrar ou então pegar o
caminho mais curto para a ponte que levava ao Setor Nova York. A vergonha seria
insuportável. Melhor arriscar.
Respirou fundo
e se atirou para dentro. Tropeçou num pedaço de pau, cambaleou e caiu rolando
até parar aos pés de uma pilha de fardos de tecido velho e embolorado.
Manteve-se imóvel, respiração entrecortada, mãos trêmulas, tentando se
acostumar à obscuridade. Acostumou-se rápido. Teto alto, vigas metálicas
entrecruzadas davam-lhe um sustento duvidoso. A ferrugem tomava conta de tudo.
Cheiro de mofo. Levantou-se devagar sentindo os joelhos doloridos. Perscrutou o
ambiente. Salão amplo onde se distribuíam pilhas de produtos desconhecidos. Um
andar superior que podia ser atingido através de uma escada localizada mais
adiante. Observou o patamar superior, arma apontada para o alto, pronto para
disparar se surgisse necessidade. Ponderou se deveria subir ou não. Lá de cima
teria uma visão privilegiada do solo e das esquinas proporcionadas pelos montes
de fazenda apodrecida. Seria também um alvo bastante destacado. Mas nenhum
confronto pode ser vencido sem que uma das partes seja mais ousada.
Foi em avanço
constante, porém com cuidado redobrado. Poderia estar procurando no lugar
errado. Poderia estar perdendo um tempo precioso. Contornou um monturo
desmoronado de velhos panos e estacou, surpreendido. Uma mulher presa a uma
corrente, bem na sua frente. Sentada no chão. Nua. Cabelos em desalinho,
imundos. Corpo manchado pela sujeira. Olhar sereno, sem nenhuma agressividade.
Mais demonstrando uma estranha curiosidade que temor ou prudência.
Olhou para ela
por longos segundos. A pistola apontada, dedo no gatilho. Foi se distanciando
sem lhe dar as costas, mantendo-a sob seu olhar atento. Chegou à escada e
analisou-a. Ferro. Superfície rugosa, a ferrugem explodindo para todos os
lados. Temia que não fosse seguro galgá-la, mas era tão sedutora a ideia de
subir que não resistiu. Colocou a pistola no bolso do casaco e agarrou-se aos
degraus superiores, içando o corpo enquanto se impulsionava com os pés. Nem bem
subiu quatro degraus quando a escada rangeu e, num forte estalo, esfarelou-se
em partes menores, fazendo-o cair.
Bateu as
costas no chão, soltou um gemido profundo e assustado e fechou os olhos,
tentando absorver a dor. Estava ainda administrando os reflexos da queda quando
a mulher acorrentada assomou, subjugando-o. A surpresa foi tanta que não
reagiu. Abriu os olhos e olhou-a sobressaltado. Os seios roçavam em seu peito,
sobre a camisa. As pernas abertas apertavam-se nas coxas dele. A vulva parecia
deixar entrever uma leve e insinuante umidade que fazia os pelos pubianos
brilharem. Os olhos antes curiosos agora exibiam desejo. Olhava-o lânguida,
aproximando e meneando o baixo ventre, quase a ponto de tocá-lo.
A ereção foi
imediata. Sentiu-se enojado e excitado em medidas iguais. Estava a ponto de
sucumbir quando a mulher abriu a boca e lhe sorriu um sorriso cheio de desejo.
Hálito putrefato. Os dentes pontiagudos quase se lhe cravaram no pescoço.
Esquivou-se com uma rápida e violenta torção de quadril. A viu tombar, rolando
pelo chão como felina, pronta para novo bote. A corrente que a prendia
desaparecera. Ela estava solta, livre. Sacou a arma e atirou. Daquela
distância, difícil errar. A bala atravessou a garganta da moça, perfurando-lhe
a glote. Ela soltou um gorgolejo, aprumou-se, mesmo assim, para o ataque, e
recebeu então o segundo balaço, este na face. Despencou em espasmos enquanto o
armazém explodia em urros, alaridos e gritos lancinantes que vinham de todos os
lados. Seguido ao súbito alarde, uma rajada de metralhadora fez explodir o chão
ao seu redor, arrancando pedaços do seu casaco e, junto com eles, partes
carnosas do seu ombro.
Seus olhos se
esbugalharam, lacrimejaram e, entre gritos aterrorizados de medo e dor,
recolheu-se, espremido, contra uma montanha de tecido, enquanto as balas
ricocheteavam ao seu redor.
Sabia que, um
dia, se não abandonasse a carreira política, acabaria indo para um segundo
turno. Era a tal inevitabilidade dos fatos. Gestão após gestão só aguardando
paciente e com boa dose de preocupação a campanha corpo a corpo que, cedo ou
tarde, viria. Sempre considerara a possibilidade de abandonar a carreira, mas
empurrava essa decisão para uma gestão futura. Assim, iam se passando os anos e
a elegibilidade se transformava numa espécie de droga difícil de abdicar.
Vencera
promissores candidatos antes. Mas nos votos, obtidos pelo recurso da oratória,
mesmo que mal dirigida. A multiplicidade de oponentes e os confrontos que
muitas vezes não se davam cara a cara resultavam em discursos-placebo. O
resultado dessa distorção, que podia ser resolvida se aprovassem os debates
públicos de primeiro turno com todos os candidatos reunidos num mesmo local,
estava ali: encurralado junto a uma pequena montanha de fardos de pano velho e
bolorento. Numerosas balas voando ao redor. Gritos ululantes ressoando.
Reuniu o pouco
que lhe restava de coragem, levantou-se num instante de pausa no tiroteio e
saiu em disparada, porta a fora. O braço esquerdo latejando na altura do ombro.
Uma mancha vermelha que crescia, se alastrando pelo casaco, tornando-o mais
pesado.
Cambaleou pela
rua poeirenta. Arma em punho, arrastando os pés, dirigindo-se para a proteção
relativa que alguns contentores abandonados lhe ofereciam. Cuspiu os
enchimentos da boca, não se preocupando se o seguiam. Nem se deu ao trabalho de
espiar por sobre o ombro dilacerado.
— É melhor se
proteger, John — aconselhou Charlie.
— O que pensa
que estou tentando fazer? — tartamudeou, em resposta.
— Então seja
mais ágil.
— Estou
ferido, droga. Fui atingido.
— Dois
projéteis de raspão, John. Ferimentos superficiais. Não vai morrer com isso.
Encostou-se na
lateral do contentor, debruçou-se apoiando as mãos nos joelhos e respirou
fundo, tentando controlar a tremedeira e o nervosismo.
— Uma
metralhadora, Charlie. Esse desgraçado tem uma metralhadora!
— Deu pra notar,
John.
— Quero saber
quem autorizou isso. É uma violação ao Código de Paridade, em qualquer uma de
suas cláusulas. Ordeno que faça um protesto formal, Charlie. Agora.
— Protocolo
aponta perda de privilégios, John. Qualquer protesto deverá ser feito após o
fim do embate corpo a corpo.
— Isso é
absurdo. Alguém está tentando manipular o resultado. Jamais vi nada parecido.
Como posso querer vencer um oponente que... que possui armamento pesado? Havia
mulheres lá dentro, Charlie. Muitas delas. Que antro é esse?
Aproximou-se
da quina do contentor e espiou o armazém de onde fugira. As portas abertas e
várias mulheres saindo por elas. Todas nuas ou em trapos. Olhares desconfiados,
posturas de cautela, como felinas prontas para fugir ou atacar, dependendo da
necessidade. John recuou para trás do contentor, assustado.
— Viu o que
vi, Charlie?
— Sim, John.
— Estão
soltas. Mulheres em estado animal, soltas!
O arrastar de
pés se intensificava. Grunhidos e línguas estalando. As mulheres farejavam o
ar, em busca do inimigo. Em meio ao sibilar primitivo, uma voz humana,
evoluída, levemente anasalada, se fez ouvir.
— Esperem
aqui. Não avancem.
John voltou a
espiar. Estava atônito. Era Ashley, só podia ser. Gorro na cabeça, óculos
escuros, uma metralhadora nas mãos. Casaco longo como o seu. Botas iguais.
Camisa e aparência como ordenavam as regras de combate numa situação de segundo
turno. Pensou em se destacar, apontar e atirar. Não mais que trinta metros os
separavam. Mas existia a possibilidade não tão remota de errar o tiro. Daquela
distância, uma rajada de metralhadora seria muito mais eficiente que disparos
solitários feitos por mãos inábeis. Estava numa situação conflitante.
Permanecer escondido em nada o ajudava. Revelar-se poderia ser a última coisa que
faria em vida.
Enquanto se
confrontava com seus dilemas, ouviu novas vozes. Voltou a olhar. Outros homens,
todos em conformidade com as regras. Todos ocultos por longos casacos, por
gorros ou chapéus, por óculos escuros. E todos armados. Vinham de todos os
lados, de outros armazéns, de galpões, de lugares insuspeitos. Pensara que
aquele lugar era ermo e abandonado... Como se enganara. Confabulavam e, vez ou
outra, lançavam olhares para o grupo de contentores.
— Sabem que
estou aqui, Charlie.
— Sabem, sim,
John.
— Mas quem são
eles? O que está acontecendo?
— Me faltam
elementos para uma análise mais acurada, John.
— Essa não é
uma disputa de segundo turno justa. Está havendo manipulação. Isso fere o
código, isso fere as normas, isso fere as leis, isso fere... fere... fere...
— Há sempre
uma possibilidade desesperada, John.
E John lançou
o olhar para as margens do rio Hudson. Acompanhou o marulhar oleoso das águas
turvas até a ponte Lincoln. Calculou a distância, com boa margem de erro, em
mais de mil metros sobre o terreno acidentado.
— No Setor
Nova York poderei elaborar um protesto formal. Poderei denunciar a manipulação
e o desrespeito às regras.
— Poderá
continuar vivo, John.
— Poderei
continuar vivo — concordou.
Então começou
a correr.
Nada como
gritos de alerta, guinchos alarmados e urros animalescos para tornar a corrida
ainda mais desesperada. Não houve tiros, porém, como poderia apostar. Correu e
caiu, levantou-se um par de vezes, voltando a cair. O terreno escondia
depressões súbitas, armadilhas perigosas. Troncos ressecados, pedras dos mais
variados tamanhos. Se por um lado não atiravam nele, fato que se o surpreendia
muito, também não o desagradava, por outro passaram a persegui-lo, correndo em
seu encalço.
— Endor...
finas... Char... lie... — pediu sôfrego, sentindo os efeitos da corrida
tresloucada e dos ferimentos que ia colecionando à medida que sofria quedas,
que rolava, que se ralava, que abria rasgos na pele frágil, que sangrava em
vários pontos. Mas Charlie ignorava-o.
Apontou a
pistola para trás duas vezes e puxou o gatilho, atirando a esmo, sem pontaria.
Esperava que seus perseguidores se sentissem amedrontados, que recuassem ou até
mesmo desistissem. Mas isso era um absurdo. Havia atrás dele quase oito Ashleys
menos cansados, menos afoitos e menos desastrados. Qual deles o verdadeiro?
Procurou pela
ponte. Via-a bem adiante, como se fosse uma miragem. Em cima dela uma barafunda
de trânsito, indo e vindo. Veículos e pessoas, tropeçando uns nos outros. Mas
ainda distante demais para infundir-lhe a esperança que tanto precisava.
— Char...
lie... — insistiu. — En... dor... finas... por... fa... vor.
Duas passadas
em falso. Cambaleou em boa velocidade. Debruçou-se sobre uma área de lodaçal e
caiu, escorregando na lama fedida, arrastando-se nela, desajeitado, afundando,
chapinhando, gemendo de dor e desespero. Ouviu risos e gargalhadas enquanto se
esforçava por se pôr de pé. Escorregava a cada tentativa, soluçava em agonia e
procurava com os olhos a ponte distante, que lhe parecia cada vez mais
inatingível.
— Charlie...
ond...e... vo... cê... se... meteu — choramingou. — Não me aban... done.
Apontou a arma
e atirou. Para sua surpresa, um dos perseguidores acusou ter recebido o
disparo, tropeçou nas próprias pernas, levando uma das mãos ao abdome e caiu de
cara no chão, contorcendo-se depois, como se sentisse profundas dores.
— Acertei! Viu
só, Char... lie? Acertei!
Como se a
euforia de um disparo bem efetuado lhe injetasse as endorfinas necessárias,
encontrou forças no esgotamento e partiu em busca da ponte. Ria enquanto
avançava. Corria desajeitado, mas com a certeza de que não estava tudo perdido.
E se fosse Ashley o atingido? E se fosse? De repente, parecia-lhe que o mundo
lhe voltava a sorrir.
Deixou para
trás a região alagada, afastou-se da margem o mais que pôde. Corria num ritmo
forte, mas agora já sem desespero. Conseguira forças extras e acreditava poder
alcançar a ponte em poucos minutos. Olhava para trás a cada cinco ou seis
passadas e via os perseguidores manterem a distância, em seu encalço, mas
cautelosos. Armados e cautelosos. Era incompreensível, mas aquela não era hora
para análises detidas dos fatos. A ponte era seu objetivo e precisava chegar
nela a qualquer custo.
Então foi
obrigado a reduzir a velocidade, reter a pressa e rever suas metas. Um grupo de
homens vestidos tal e qual os que o seguiam, reuniam-se à frente, cercando-o,
obstruindo seu caminho. Viu-se, súbito, sem saída. A possibilidade que tinha de
chegar até a ponte Lincoln foi reduzida a frações infinitesimais. O medo
retornou com mais força, a sensação de fracasso era esmagadora.
Sacou a
segunda pistola. Manteve-as em ambas as mãos, apontadas para lados contrários.
Nem os de trás se aproximaram, nem os da frente. Apontavam, contudo, suas armas
para ele. E eram metralhadoras. Pareciam forçá-lo a tomar um caminho
alternativo, pareciam querer que se afastasse dali, que fosse embora das
margens podres do rio.
Quem seria
Ashley? Já aceitara que fora vítima de uma conspiração. Só não conseguia
compreender por que tanta complexidade. Se o objetivo dele era matá-lo, como
mandavam as regras de combate para uma campanha de segundo turno, por que ainda
não o tinha feito? Qual era o grande impedimento em dar cabo à perseguição de
uma vez por todas?
Olhou ansioso
ao redor. Armazéns, terrenos largos e desabitados, um prédio decadente, em
ruínas, a uns cem metros de distância. Se queriam que tomasse aquela direção,
tomaria. Não lhe restavam mais alternativas e talvez essa fosse, enfim, a
maneira mais rápida de dar fim a todas as questões que surgiam e para as quais
nenhuma resposta se apresentava. E morrer ao abrigo de um imóvel qualquer,
mesmo um à beira da decrepitude, era melhor que à margem do rio, imerso no lodo
tóxico, inútil até mesmo para os ratos, que o evitariam.
Manteve-se
firme segurando as duas armas, já que isso lhe dava uma falsa sensação de
segurança, e caminhou devagar para o prédio. Viu dois andares, aberturas nas
paredes que, um dia, foram janelas. Uma porta semiaberta, sem trinco, sem
fechadura, o postigo escancarado. Rachaduras centenárias trincavam as paredes,
deixando cair pedaços de reboco por todos os lados. Pichações tão antigas
quanto as rachaduras ainda resistiam ao passar das gerações, exibindo sinais
para ele desconhecidos, pertencentes a um tempo anterior ao seu tempo.
Parou à
entrada. Observou o interior escurecido e silencioso. Olhou para trás, para os
homens que iam se aproximando devagar, cercando-o. Entrou. Pronto para atirar
em qualquer coisa que se movesse.
Tão poucas
horas antes. Tão poucas... Construíra um cenário diferente deste que vivia
agora. Imaginava-se eleito — como em todos os pleitos, com maioria absoluta —,
usufruindo mais uma vez das maravilhosas benesses que o cargo oferecia. Deixava
a imaginação solta, enxergando-se num futuro bastante próximo como presidente
de todos os setores, senhor absoluto dos rumos políticos da nação. Os louros da
vitória, a coroa do campeão. Era para ter sido uma eleição tranquila, sem
segundos turnos nem campanhas corpo a corpo. Principalmente fraudadas como
esta. Lamentava a sorte. Lamentava existirem candidatos, membros dos conselhos
superiores, congressistas e diligentes proletários setoriais envolvidos em
corrupção. Envolvidos em canalhices, manipulando o resultado de um segundo
turno que era para ser honesto, conduzido dentro das mais nobres regras do
jogo.
Sentia-se
agitado. Uma sensação desesperada de quem não podia mais ver nenhum futuro
diante de si a não ser a morte; porém a sobrevivência era um apelo do qual não
podia fugir mesmo consciente da derrota. Adentrava ao hall do prédio.
Pisava sobre camadas de pó ancestrais, já dispersas e demarcadas por vários
caminhares.
Então girou o
corpo com a mesma precisão de um homem em pânico. As armas seguras por mãos
trêmulas. Numa pequena sala, duas mulheres o observavam. Ambas vestidas com
andrajos. Não esboçaram reação. Passou por elas, assustado. Passou diante de
outras portas. Mais mulheres. Muitas indiferentes. Algumas o observavam com
certa curiosidade. Incomodava-o demais a imprevisibilidade. Atormentava-o a
incerteza.
Parou aos pés
do curto lance de escadas que levava ao piso superior. Não lhe restava
alternativa senão galgá-la. Era para isso que o tinham obrigado a entrar, não
era? Para se deparar com a verdade residual em toda a mentira. Respirou fundo,
limpou o suor da fronte com a manga do casaco e iniciou a subida. Degrau a
degrau, olhos atentos a qualquer movimento, nervos retesados, quase com cãibras
de tanta tensão.
Duas portas à
frente. Porta ao lado. Porta ao final do curto corredor. Portas... Essas
fechadas em trincos sólidos. Dentro delas algumas respostas, ou nenhuma.
Qualquer que fosse o resultado, exultaria. Estava cansado e a morte, nessas
circunstâncias, começava a fazer algum sentido.
Não tinha
preferências. Então empurrou a que estava logo à frente. A porta se abriu num
rangido medonho, pondo-o ainda mais nervoso. Não havia ninguém lá dentro.
Voltou-se para a porta ao lado. A fez se abrir, desta vez sem tanto alarde.
Constatou o aposento vazio. Mais duas: uma em cada extremidade do corredor.
Tanto uma como outra lhe ofereciam a mesma importância. A mais próxima, porém,
venceu pela distância. Não chegou a abri-la, todavia. Antes que o fizesse, foi
atingido na cabeça e, num delírio de cores e sons, desabou no chão imundo.
A última vez
em que perdera os sentidos — a única vez, na verdade — fora quando ainda jovem.
Envolvera-se numa briga fútil por causa de alguns projetores holográficos; quisera
que fossem removidos da sala onde se encontravam para um salão mais amplo, onde
um número maior de pessoas pudesse participar de um projeto que seu grupo
desenvolvera na universidade. Um colega queria o contrário, defendendo que
apenas poucos escolhidos pudessem compartilhar da experiência. Nem soube ao
certo como as coisas desandaram, mas logo se agarraram, trocando socos e
xingamentos. Ao rolarem pelo chão, bateu a cabeça no pé de uma estante. Foi
súbito, lembrava-se de um clarão imediato, uma onomatopéia qualquer de explosão
e depois o silêncio. Desfalecer nessas circunstâncias era sempre traumático.
Fora assim
também desta vez. Retornava de algum lugar longínquo; arrastava consigo uma
miríade de escombros do que fora sua vontade, ideais, aspirações e projetos.
Despertou já bastante consciente de sua situação e do que ocorrera. A dor na
cabeça, o pulsar, não chegava a lhe embotar o raciocínio, embora quisesse
demais que isso ocorresse. Melhor mergulhar numa maré de insanidade traumática
do que na correnteza da razão. Mas a razão gritava para que abrisse os olhos,
enquanto ainda os mantinha fechados, numa tentativa débil de parecer
desacordado, de “sentir” o ambiente antes de enfrentá-lo de peito aberto.
Então os
abriu, aos poucos. Vencendo a claridade que lhe ofendia a visão. Encontrou-se
sentado, costas apoiadas na parede. Cabeça reclinada sobre o torso. A primeira
coisa que viu foi o próprio baixo ventre. A segunda, os pés em botas grosseiras
do homem que, apoiado no vão da janela, observava-o.
Fitaram-se por
alguns segundos. Era Ashley? Claro que sim. Quem mais seria? Questionou-se, antes
de abrir a boca ressecada e praguejar baixinho contra a situação pouco honrosa
em que se encontrava.
— Caça e
caçador frente a frente, Ashley Lavendish — arriscou-se no palpite.
— John
Mitchel, governador do setor Nova Jersey — respondeu a pessoa diante dele. A
voz forte, poderosa, atípica para um quase garoto. E John incomodou-se com
isso.
— Subjugado
aos seus pés. Que mais pretende de mim?
— Esclarecer
fatos, John. Dirimir dúvidas. Arredondar questões. Matá-lo, agora, não mudaria
o fato de que sou vencedor da contenda, mas me tiraria o prazer desta rápida
entrevista.
— O corpo a
corpo desrespeitou todas as regras de paridade. Foi um escândalo. Sua vitória é
contestável — John respirou fundo, tentando ignorar a dor de cabeça, o latejar
constante na altura da nuca.
— O que são
regras, John, senão mecanismos feitos para serem burlados? Seguem-nas os tolos
ou os fracos.
— Não creio
que queira exercitar filosofia. Nem eu, tampouco. Esta entrevista pretende o
quê? — John olhou para o rosto de Ashley, ainda resguardado pelo gorro e pelos
óculos escuros. O casaco de gola alta protegia-lhe o pescoço. Braços indolentes
ao lado do corpo, esse ainda apoiado no vão da janela, pernas cruzadas. Sorriso
suave. Lábios grossos e delineados.
— Não era você
que persegui quando do primeiro tiroteio. Aquele tinha lábios finos.
— Você é um
bom observador. Nem fui eu que disparei contra você no armazém, convém revelar.
Nem era eu qualquer um dos que o seguiram ou cercaram, induzindo-o a entrar
neste prédio.
— Quantos
tomaram parte nesta farsa?
— Muitos,
John. Mais do que pode imaginar.
—
Congressistas e proletários setoriais. Acertei?
— Errou, John.
Pessoas desconhecidas, inexistentes no sistema. Não-nascidos, não-monitorados,
não-induzidos, não-cerceados, não-perseguidos. Toda uma gama de indivíduos à
margem de nossa sociedade hipócrita. Pessoas ressentidas e ansiosas por verem
os rumos políticos deste país sofrerem uma guinada vertiginosa. Ninguém que
você conheça ou em quem tenha sequer passado os olhos em toda a sua insignificante
vida.
— Impossível
planificar uma farsa dessa natureza se utilizando de pessoas não registradas.
Alguém facilitou. Um membro destacado qualquer da cidade-alta. Um administrador
de sistemas, um diretor de recursos, um político graduado, um delegado dos
costumes... Alguém.
— Alguém... —
repetiu Ashley — Ou alguma coisa. Depende do ponto de vista ou do referencial.
— Do que está
falando?
— De mim —
respondeu Charlie. A expressão de John, que era de ultraje, se modificou para
uma palidez própria dos aturdidos.
— Charlie... —
balbuciou John, levando, transtornado, ambas as mãos à cabeça.
— Um pequeno
aporte às planificações originais, John. Estratégias alteradas, situações
reavaliadas, prognósticos modificados mediante intrusão direta nos resultados.
Mas se trata de algo benéfico, John. Bom para o país, bom para seus habitantes.
—
Principalmente para seus habitantes, se levarmos em conta que o país, hoje, não
é mais do que a cidade-alta – completou Ashley, demonstrando que a conversa de
Charlie com John era, na verdade, uma conferência.
— Você o
desprogramou. Você deturpou uma IA original. Isso é crime hediondo! — vociferou
John, tentando se erguer, mas sem sucesso. O corpo lhe pesava uma tonelada. Na
tentativa se deu conta de que havia mais alguém ali com eles. Virou-se para
olhá-lo e teve o segundo choque. Era uma mulher. Vestida conforme as regras do
combate. Cabelos soltos, lábios vermelhos, tingidos, olhos verdes, tez pálida e
bem tratada. Olhava-o com desprezo. Nas mãos, uma metralhadora.
— Não fiz nada
disso, John. Nem saberia como fazê-lo — disse Ashley.
— Eu tomei a
decisão, John. Procurei Ashley e propus um acordo. Apresentei os termos.
Negociamos por alguns dias. Cada parte cedeu um pouco. Chegamos a bom termo —
prosseguiu Charlie.
John estava
estarrecido. Podia se permitir imaginar que uma IA fosse adulterada de tal
forma a mudar partes de seu comportamento, até mesmo toda sua programação, nos
mínimos bits. Mas supor que uma IA pudesse, de forma deliberada, se
insurgir contra o sistema que a criara e programara; trair de maneira resoluta
o seu senhor... Isso era inconcebível.
— E o que,
afinal, provocaria esse terrível pesadelo? O que seria tão surpreendente para
ensejar uma conspiração de tal magnitude?
A resposta
veio em seguida. Ashley retirou os óculos, o gorro, o sintetizador de voz e
pôs-se do jeito que era diante de John, para seu terror mais absoluto. Ashley
não era o do primeiro tiroteio. Nem o do segundo. Tampouco um dos que o
seguiram até o prédio. Descobria agora que Ashley não era Ashley. Pelo menos
não do jeito que imaginava ser.
Ashley era uma
mulher.
Nada poderia
ser mais atordoante que descobrir que Ashley era uma representante do sexo
frágil e inútil. Uma escrava dos homens, uma subjugada, uma pária para quem
restos de comida e migalhas de comiseração deveriam ser fortunas disputadas.
Então uma súbita luz lhe aflorou aos olhos. Sorriu, sentindo uma euforia
difícil de conter. Logo o sorriso se transformou num riso contido, depois numa
gargalhada logo interrompida por uma coronhada na cabeça. Nem a dor
sobrepondo-se à dor foi suficiente para fazê-lo se prostrar.
— Sua idiota!
Não poderia esperar nada mais de uma mulher. Idiotas, todas vocês! Mulheres são
inelegíveis. Mulheres não podem concorrer a cargos públicos. Mulheres não podem
concorrer a nada, senão ao supremo favor de as deixarmos vivas, para nossos
interesses!
— E você mesmo
tratou de garantir isso, não é, John? Cercou-se de um bando de congressistas
inúteis e os fez aprovar novas leis dessa natureza. Tem um excelente poder de
agregação, oratória afinada, insights precisos, pensamentos rápidos,
incrível senso de colocação, nas mais difíceis situações, habilidade de
manipulação invejável, não é mesmo? — perguntou Ashley, agachando-se diante
dele, deixando-o vê-la em toda a sua feminilidade. Cabelos libertos, ainda
úmidos pelo suor, mas negros e lisos, olhos igualmente negros, de pupilas
dilatadas, lábios grossos e ressecados.
— O velho
Lavendish continua surpreendendo, mesmo depois de morto.
— O velho
Lavendish me ensinou tudo. Ele me preparou para isso.
— Canalha
miserável. Mas se esqueceu de lhe dizer
que jamais poderia chegar ao poder. Não conseguirá reclamar o cargo.
Governadora... Só um louco poderia conceber tal aberração — disse com sarcasmo.
— E quem disse
que quero reclamar esse cargo, John? Quem lhe disse que estou aqui para
destituí-lo? — o olhar de Ashley era quase meigo. Como se observasse com
extrema atenção um garotinho assustado. John atrapalhou-se todo. A tensão e o
estresse excessivo roubavam-lhe considerável poder de dedução, de apreensão dos
fatos.
— Não pretende
destituir-me? Que diabos está dizendo?
Tanta
pantomima, tanta perseguição, aquele circo todo montado, os palhaços no
picadeiro, malabaristas, prestidigitadores. Não o mataram nas diversas vezes em
que o tiveram nas mãos. Ainda continuava vivo, com Ashley gastando saliva num
discurso estranho e até então sem sentido ou fundamento. Simples necessidade de
exibir sua supremacia? Esfregar-lhe na cara o fato de ter sido derrotado por
uma mulher? Começava a duvidar, embora ainda não percebesse o sentido real dos
fatos.
— Nasci para
as armas, para a luta, mas não posso negar que o jogo político me seduz, John. Porém,
sou ainda ineficiente nele.
Uma Joana D’Arc
do futuro, pensou John. Uma guerrilheira, por mais que a simples concepção do
fato lhe provocasse engulhos. Queria rir, mas a última coronhada o instruíra a
controlar esses impulsos.
— Brilhante
sua atuação no confronto recente. Já mostrou que sabe conduzir títeres. Que tal
voltar para casa, permitir-se uma lavagem cerebral e viver a vida de acordo
como ela é concebida para as do seu sexo?
— Tenho outra
ideia, essa mais interessante. Que acha de eu promover uma rebelião e tomar à
força o poder de todos os setores, pelo menos dos que realmente importam?
Quantas
coronhadas seriam necessárias para fazê-lo retornar à razão? A risada
brotou-lhe da garganta como um vômito quente. Tossia durante o riso, sentindo já
sobre o pulmão os efeitos do ar pesado, fuliginoso e tóxico da cidade-baixa.
Uma nova coronhada fez o riso ser substituído por um gemido longo e choroso.
Ainda lamentava quando Ashley, com a ajuda da mulher armada que o agredira, o
ergueu e o fez ir até a janela. Do lado de fora uma multidão armada até os
dentes. Centenas de mulheres, vindas das profundezas do inferno. Todas com
longos casacos, calças pesadas, botas e armas. Identificou dezenas de rifles
plásmicos entre as armas primitivas.
A visão esteve
próxima de arrancar-lhe todo e qualquer resquício de sanidade. Perplexo,
estonteado, sem fôlego, quase sufocando de terror. Quando que, mesmo nos mais
terríveis pesadelos, imaginaria um cenário como esse? Se remontasse à história
antiga da civilização, chegaria aos tempos onde bárbaros davam às mulheres
igualdade de condições, onde se permitia que votassem e que se candidatassem —
ignomínia! Mais ainda para trás no tempo, descobriria guerreiras ferozes e
destemidas. Mas os tempos modernos as haviam relegado ao posto que lhes cabia.
Foram varridas para debaixo do tapete, atribuíram-lhes a devida importância; ou
seja: nenhuma.
Vê-las
perfiladas ao largo do rio, armadas e aguerridas, o fazia sentir vertigens.
Como se o mundo estivesse dando cambalhotas, desgarrado da lei da gravitação
universal. As coisas voando ao redor dele numa fantasia atribuída a um tipo
qualquer de alucinógeno.
— Numa
simultaneidade ambiciosa, cairão os setores Nova Jersey, Nova York, Califórnia,
Washington, Arizona, Massachussets e Ohio. Depois, na sequência, Texas,
Connecticut e Michigan. Os demais se curvarão sem a necessidade de confronto.
Aqui temos oitocentas combatentes. No resto do país, mais oito mil. Pode
parecer pouco, mas para as cidades-altas, mergulhadas em autoadmiração,
incapazes de conceber tal cenário, é mais do que suficiente — explicou Ashley,
num tom didático e paciente.
— Isso sem
contar com minha contribuição decisiva — emendou Charlie, saindo do longo
mutismo em que imergira — abrindo os códigos de defesa e tornando-os
inoperantes. As câmeras de vigilância nada mostram a não ser imagens
inofensivas. Também absorvi as demais IA, tornando-as extensões de mim mesmo.
As cidades-altas referenciadas por Ashley estão à mercê de uma revolução jamais
antes presenciada.
— O fim do
despotismo sexista — completou Ashley.
John estava
pálido. Suas pernas bambeavam e teria caído se ainda não o sustentassem. O que
vira e o que ouvira estava muito além do que se considerava apto a aceitar. Não
sabia o que mais o aterrava, se o fato das mulheres reivindicarem um poder a
que não tinham nenhum direito, ou Charlie ter se libertado de sua programação,
ignorando as premissas básicas de sua existência, e se associando a uma fêmea
para derrubar o atual sistema. Qual fosse a resposta, não cria estar preparado
para sobreviver a qualquer uma delas.
— As chances
de fracasso são consideráveis — tartamudeou, sem saber o que dizer e expondo
muito mais os seus desejos do que as suas convicções.
— As chances
de fracasso são de 1,27% — retrucou Charlie.
— 1,27%. Há de
convir que as chances estão quase todas do nosso lado, John. Isso não o faz
pensar? — perguntou Ashley.
— O que quer
que pense? O que quer que faça? Essa demonstração toda para quê?
— Vamos lá,
John. Você é mais inteligente do que isso. Um político nato. Está no seu
sangue. Sua oratória é impressionante, sua capacidade de atrair admiradores
idem. Amam você, respeitam você, acatam suas ideias depois de ouvir seus
inflamados discursos. É um carismático.
Então John
apanhou uma fagulha do que lhe diziam e lutou para transformá-la numa labareda.
Rápido no raciocínio, imaginou um mundo profundamente alterado, tendo mulheres
nos postos-chave do país, comandando os rumos da nação. E descobriu que isso
era tão ruim ou bom quanto o cenário existente agora. Que, sejam homens ou
mulheres, sempre haverá alguém no poder. Que ele precisa ser exercido e que os
ciclos são imutáveis, indo e vindo em correntezas constantes, alterando a
realidade na medida em que essas alterações se fazem necessárias.
— Somos
amazonas. Fortes, poderosas, denodadas... Mas nos falta o traquejo político.
Nisso, ainda precisamos evoluir.
As
cidades-altas sendo derrocadas, uma a uma. John assistia isso diante dos seus
olhos. A sociedade tecnocrata — e não despótica na sua concepção — sendo
demolida, substituída por algo mais humano, talvez. Uma miscigenação, onde
homens e mulheres poderiam operar em benefício mútuo e da coletividade.
Assustava-se com pensamentos assim, que pouco antes o teriam revoltado, agora
assumiam formas mais visíveis, mais aceitáveis.
— Temos
ideias, temos coragem, temos determinação, temos vontade política, entende? Mas
a política mesmo, a que se faz não numa guerra, mas em várias batalhas de
trincheira, essa ainda não temos.
John viu a
presidência ser ocupada por Ashley. Por que não? Era a líder. Nada mais
natural. Seria aclamada não só pelas mulheres oprimidas, mas também por muitos
homens que não concordavam com a política atual. E alguns eram até bastante
influentes.
— Não é porque
fomos submetidas à tirania do homem que abriremos mão daqueles que nos são ou
possam ser úteis. Como pode ver, temos visão.
E a governança
poderia ser mantida, concluiu John para seu próprio deleite.
— Aceito —
disse John, sem titubear. A voz firme. A determinação própria do político
audacioso.
Seis meses
depois, observava a urbe das alturas, instalado em seu lóculo de nível três,
governador do setor Nova Jersey. Oitocentos e quarenta e nove metros acima do
solo, para ser bem exato. A cidade-baixa se confundia em meio às nuvens de
gases tóxicos, mas agora era menos atribulada, menos super-povoada. Uma rápida
política de arejamento incinerara um milhão e novecentos mil habitantes,
tornando a cidade mais transitável. Desses, apenas 2% de mulheres, essas em
estado tão calamitoso que nenhum programa médico seria capaz de recuperá-las.
A política de
arejamento continuara por outros setores no país, expurgando mais de oitenta e
quatro milhões de habitantes — maioria esmagadora de homens —, apesar dos
veementes protestos de empresários que viam mão de obra barata — agora
masculina — ser desperdiçada. As cidades-altas perderam, juntas, nove milhões
de habitantes. Somadas as incinerações, noventa e três milhões de bocas a menos
para respirar e alimentar.
Como John
previra, Ashley tomara o poder, assumindo a presidência, apenas três dias após
a revolução. Ele se dirigira ao plenário e dera o melhor de si no sentido de
que os congressistas, os sobreviventes, claro, aceitassem os fatos e passassem
a apoiar as novas donas da casa. Vinha fazendo isso com certa frequência. Era o
porta-voz e principal defensor da nova ordem.
Ashley pegara
suas herdeiras de genes, as duas meninas, e viajara fazia duas semanas. Deixara
o país nas mãos dele, e nas de assessoras imediatas. Para firmar importantes
acordos comerciais e militares, segundo sua assessoria.
Não havia
mudado muita coisa no sistema. Trocaram-se homens por mulheres. Eram poucos os
que mantinham certas regalias e algum prestígio junto a elas. Os demais foram
reduzidos à situação de submissão, servindo-as, uns poucos, em jogos amorosos e
a outros que tais, como por exemplo cobaias em testes de laboratório e mão-de-obra
barata na indústria. Notara, também, que as mulheres preferiam muito mais umas
às outras, numa demonstração clara de predileção homossexual, reforçada por
décadas de submissão e confinamento grupal a que foram submetidas.
Quanto a
Charlie, mantinha-se como personagem secundária. Uma IA única que abolia todas
as variantes e que construía suas próprias premissas, em constante aprendizado.
Lembrava-se
bem quando o inquirira sobre suas motivações nesse jogo de poder e a resposta
que obtivera ainda repercutia em sua mente. Uma prova inconteste, diante dos
últimos acontecimentos, de que a Variável da Imponderabilidade não seria
mais imperativa.
Observar a
urbe era uma rotina realizada todos os dias. Mas sabia que isso acabaria logo,
a não ser que elaborasse valiosos argumentos que pudessem mantê-lo no cargo de
governador, sem prejuízo de seus privilégios.
“Que, sejam
homens, mulheres ou IA, sempre haverá alguém no poder. Que ele precisa ser
exercido e que os ciclos são imutáveis, indo e vindo em correntezas constantes,
alterando a realidade na medida em que essas alterações se fazem necessárias.”
— dissera-lhe Charlie, num gracejo repleto de ironia, parafraseando-o.
— Ah-ah! —
riu-se John numa careta. Lembrou-se dos analgésicos e foi buscá-los. Desta vez
a dor de cabeça era certa.
E seria daquelas.
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