quarta-feira, 11 de julho de 2012

Decepções da Paternidade

por Miguel Hernâni Guimarães

NE: por pedido expresso do autor, este conto respeita as regras ortográficas anteriores ao AO90... embora só uma palavra no título fosse alterada com as novas.

Quando Miguel foi buscar o filho ao terminal do submaglev, deu com ele lavado em lágrimas e carrancudo. Encheu-o de perguntas mas a única resposta que o miúdo lhe deu foi virar-se para a janela, de bochecha encostada ao punho e cotovelo apoiado no braço do banco, observando com olhos baços os prédios decrépitos do centro histórico enquanto a velha carripana da família era lentamente conduzida até casa pelo serviço central de controlo de tráfego.
Miguel acabou por desistir. Quando o raio do puto ficava com aqueles humores não havia nada a fazer. Era deixá-lo choramingar até ao fim. A mãe logo lhe arrancaria o que o tinha posto naquele estado. A conta-gotas, que o miúdo era casmurro. Portanto fez o mesmo que o filho: apoiou o cotovelo ao braço do banco, encostou o punho à bochecha e pôs-se a ver a paisagem.
Quando chegou a casa, Conceição já lá estava. Tinha acabado de chegar, e entregava-se à laboriosa tarefa de despir a profusão de arrebiques, fitinhas e penduricalhos que estavam na moda naquela semana. O puto nem a olhou: arrancou logo para o quarto e trancou-se lá dentro com estrondo. Conceição olhou Miguel como quem pergunta o que se passa. Miguel encolheu os ombros.
— Encontrei-o assim.
O olhar interrogador não vacilou. Miguel explicou:
— Não me disse nada. Está amuado.
Conceição fez rolar os olhos, suspirou, levantou-se ainda só meio desenfeitada e foi bater à porta do quarto do filho.
— É a mãe, Zezinho. Posso entrar?
A porta destrancou-se depois de um par de vá-lás e a mulher desapareceu. Era bom sinal.
Ficaram lá dentro até o carrilhão da casa repicar pela segunda vez para o jantar. Miguel já estava à mesa, impaciente, com a sopa de soja na frente e o puré de tofu na calha, sentindo-se tentado a começar a comer sem a família. Quando esta chegou, vinha tristonha. Já não só o puto, mas Conceição também. Foi a sua vez de levantar as sobrancelhas, mas a mulher abanou a cabeça.
Resignou-se à espera e começou a comer.
O jantar decorreu basicamente em silêncio. A meio, já farto de todo aquele sossego, Miguel levantou-se, foi buscar os óculos e respondeu ao olhar reprovador da mulher com um encolher de ombros e uma fungadela. Sentou-se, ligou os óculos e, quando a hiperrealidade do jogo se sobrepôs à cena deprimente do jantar, a boca curvou-se-lhe num leve sorrisinho enquanto dava tiros com o mesmo garfo com que de vez em quando trespassava uma batata frita e a levava à boca.

Após o jantar, depois do puto retirar para o quarto, o casal teve a conversa que tardava.
— Então? Percebeste o que há com ele? — começou Miguel.
— Parece que teve problemas na escola.
— Até aí cheguei eu sozinho. Que problemas? Andou à porrada com alguém?
Conceição suspirou.
— Não. Pior. Parece que está a ficar para trás.
— Para trás como?
— Oh, parece que os outros miúdos fizeram ontem cinco cadeiras e ele só conseguiu fazer três. Trouxe um papelinho da escola. Reprovaram-no em física do estado sólido e história mongol do século dezassete.
— E depois? Faz essas cadeiras amanhã. Isso está sempre a acontecer com os putos. Há dias em que estão mais em baixo e deixam cadeiras para o dia seguinte, não…
— Não é assim tão simples, Miguel — interrompeu Conceição, baixinho, torcendo o guardanapo nas mãos e erguendo o olhar para as luzes que brilhavam no canto da sala.
— Como não? — Miguel começava a irritar-se. — Que diabo se passa, afinal? Desembucha!
Conceição voltou a suspirar.
— O Zé tem andado a mentir-nos — murmurou. — Não deixou ficar para trás só estas duas cadeiras. Já nos devia ter dado mais papelinhos daqueles. Apareceu hoje naquele estado porque a escola lhe exigiu a devolução dos papéis assinados até amanhã. De todos. Caso contrário contactaria os pais. O miúdo ficou em pânico.
— De todos? Que queres dizer com isso de todos? Quantos são, afinal?
— É uma pilha, Miguel. Ele mostrou-mos.
— Quantos são, porra? Quero um número!
— Não os contei. Mas a pilha é grande. E segundo ele diz tem cento e vinte e três cadeiras por fazer.

Claro que deu em crise. Houve gritos, houve choros, houve acusações e acabaram todos na net, cada um por seu lado, cada um absorvido pelo seu alienatório preferido.
Nos dias seguintes Miguel tentou resolver o assunto. Foi pessoalmente à escola, onde teve uma embaraçosa conversa com um par de professores, um dos quais exercia naquela semana o cargo de presidente de turma. A conversa acabou com ele a sair desembestado porta fora, acusando todo o corpo docente de não valer um cêntimo, e ameaçando levar o miúdo para outra escola.
Parvoíce. Os professores eram todos andróides e estavam ligados em rede aos serviços pedagógicos centrais do ministério. Em qualquer outra escola a matéria seria ensinada rigorosamente da mesma forma, e esperava-se que os alunos a aprendessem rigorosamente da mesma maneira. Miguel sabia tudo isto, mas naquele momento não queria saber. Estava mais que furioso.
Quando se acalmou voltou para casa e consultou um pedopsicólogo. Enviou-lhe a última mnemogravação do miúdo e dez minutos depois recebeu o resultado. Não era bom. Aparentemente, o filho sofria de uma coisa qualquer chamada desfasamento cognitivo de terceira ordem, conjugado com insuficiências na resposta ética. Por baixo, o relatório trazia uma longa série de hipóteses para a origem do problema e algumas sugestões de solução. Algumas, tanto das hipóteses como das sugestões, punham a ênfase em deficiências do meio familiar, o que imediatamente o encheu de dúvidas sobre a competência de mais aquela máquina.
Apesar de tudo procurou pôr em prática algumas das soluções propostas. Nenhuma resultou. Dois meses mais tarde, quando acabou por desistir, o miúdo tinha já duzentas e quatro cadeiras atrasadas e agora era a escola que ameaçava expulsá-lo se o encarregado de educação não comparecesse a uma reunião com o conselho pedagógico no dia tal às tantas horas.
Foi, claro.
E levou a Conceição.

A reunião não começou bem. Demonstrando a falta de savoir faire e a memória eidética típicas das máquinas, os membros do conselho pedagógico depressa trouxeram à baila a saída destemperada de dois meses antes, e pareceram deliciar-se com a enunciação detalhada de todos os pormenores dos sucessivos falhanços da aprendizagem do filho. Miguel depressa se começou a enervar, depois a irritar e, quando Conceição lhe pousou uma mão no braço, naquele gesto tipicamente feminino que pretende instilar calma num parceiro intimamente cavernícola mas tem quase sempre o efeito oposto, explodiu:
— Se me chamaram aqui para me esfregarem na cara todos os defeitos da minha família, vou-me já embora! Mas é já!
A sua tentativa para se levantar, porém, foi cortada pelo único membro humano do conselho pedagógico, uma velha muito velha, cuja pele lisa e jovem e cabelo perfeito denunciavam os efeitos de uma miríade de operações cirúrgicas e tratamentos de beleza, mas cuja idade era evidente pelo modo cuidadoso como se mexia e articulava as palavras.
— Calma, senhor Prado, tenha calma. Estamos aqui para o ajudar, e principalmente para ajudar o seu filho. Peço-lhe só um pouco mais de paciência. É que tem de compreender bem a situação para podermos aplicar eficazmente a solução, percebe? Deixe os colegas chegarem ao fim, por favor. E não se irrite, que não queremos insultá-lo. Pelo contrário, vai ver.
Embora a contra-gosto, Miguel voltou a instalar-se na velha cadeira almofadada que se lhe amoldava imperfeitamente ao corpo.
— Está bem. Desculpe. Continuem lá.
E continuaram, fazendo uma lista das tentativas que ele tinha feito para resolver o problema. Miguel ouviu, roendo-se por dentro, olhando Conceição de soslaio, perguntando a si próprio se teria sido ela a fornecer aquelas informações à escola. Mas mal sabia ele que o pior ainda estava para vir.
O pior acabou por chegar sob a forma de uma descrição em que a reprovação conseguiu transparecer mesmo na voz inexpressiva do andróide que a fez. Uma descrição que apanhou ambos os pais completamente de surpresa. A descrição de uma tentativa de fraude. Perpetrada pelo filho. E falhada.
Claro.
Só podia ter falhado.
Parecia que o raio do puto tinha tentado penetrar no sistema informático do Ministério, usando um método que provavelmente teria sido obtido online, algures. Felizmente (ou infelizmente, talvez), a técnica estava já obsoleta há ano e meio e o Ministério rapidamente pusera em campo as contra-medidas indicadas. Não demorara a identificar o responsável pela tentativa de intrusão. O Zé.
Miguel não aguentou mais.
— E o filhinho da mãe que não nos disse nada! Sabendo que tinha sido apanhado, continuou a agir como se nada fosse! Ai quando lhe puser as mãos em cima! Vai…
— Ele não sabe — interrompeu a velha.
— Como?
— Ele não sabe que a intrusão não teve sucesso. Pensa que conseguiu entrar no sistema e dar a si próprio passagem às cadeiras que os senhores não sabem que tem em atraso…
— … que nós não sabemos que… O quê?! Não me diga que são mais que duzentas e quatro!
— São duzentas e vinte e três — esclareceu implacavelmente um dos andróides. — E hoje, segundo os relatórios preliminares de que dispomos, deverão aumentar para duzentas e vinte e cinco.
Conceição levou a mão à boca, Miguel afundou-se na cadeira e mergulhou a cabeça nas mãos. Aquilo não podia estar a acontecer. Não podia. Era impossível. Impossível!
Conceição foi a primeira a recompor-se.
— Disse que estão aqui para nos ajudar — disse com a voz trémula — embora eu não veja como. Isto parece muito mau.
— É menos mau do que parece — respondeu a velha com um leve sorriso. — Temos uma proposta para vos fazer. Mas primeiro têm de compreender uma coisa: é verdade que o vosso miúdo tem problemas graves de aprendizagem e que a sua formação ética é quase inexistente, mas não é inteiramente desprovido de qualidades. A tentativa de intrusão nos serviços do Ministério mostrou-nos duas coisas: que é capaz de mostrar iniciativa, quando acha que poderá conseguir vantagens pessoais dela, e que consegue levar outros miúdos a confiar nele e a fornecer-lhe algo de que precise. Compreendam que não foi ele que arranjou o programa que usou na tentativa de fraude; convenceu outro pequeno a arranjar-lho. Estamos até convencidos de que também não foi ele a usá-lo, ou pelo menos de que não o usou sozinho, embora ainda não tenhamos conseguido descobrir quem o ajudou nessa parte. Mas nem importa. Se concordarem com o que vos propomos vamos transferi-lo para outra ala, onde ele terá outros colegas, colegas de outra índole.
— Que ala? Que índole? — perguntou Miguel, intrometendo-se na pausa que a velha fez para respirar.
— Já lá chegaremos. Deixe-nos explicar tudo primeiro. Temos de vos fazer compreender bem que a proposta que queremos fazer é tanto do vosso interesse como do nosso, o que garante à partida que faremos tudo o que pudermos para termos todos sucesso com o vosso filho. Não vou entrar para já em pormenores. Digamos simplesmente que se a escola for bem sucedida com o vosso filho isso nos poderá trazer certas vantagens que neste momento nos fazem falta. Mesmo sendo este um compromisso de longo prazo. E mesmo tendo nós, claro, outros candidatos promissores, que estamos também a tentar preparar. Mas a verdade é que, ao avaliarmos o vosso filho, chegámos à conclusão de que ele tem precisamente as qualidades necessárias para chegar lá. Não será o melhor de todos, mas está perto. Compreendem o que vos estou a dizer?
— Sim, mais ou menos — disse Conceição, com um brilho de esperança a acender-se no olhar. — Não percebo é todo este mistério.
— Dentro de um momento compreenderá tudo. Ora bem: para conseguirmos atingir os nossos fins, teremos de fazer alguns ajustes ao plano curricular do pequeno Zé. Propomo-nos substituir a conclusão das duzentas e tal cadeiras que tem em atraso por um número equivalente de créditos que, na prática, farão com que ele avance até ao ponto curricular em que deveria estar neste momento. Ou seja: ficará sem nenhuma cadeira atrasada. Soa-vos bem?
Miguel olhou para Conceição, Conceição olhou para Miguel, este falou.
— Claro. Mas continuo sem compreender este milagre. Nem o que a escola ganha com ele. Nem a sua legalidade.
Quem respondeu foi um dos andróides.
— O que a escola ganha é influência, meu amigo. Quanto à legalidade, o nosso departamento jurídico diz-nos que não é ilegal. Para o conselho pedagógico isso basta. O que a vossa família ganha é evidente, portanto escuso de explicar. Em resumo, o novo plano curricular concentrar-se-á em desenvolver as melhores qualidades do vosso filho, a sua inteligência interpessoal, o seu espírito de iniciativa, o seu carisma, etc. Poremos de parte o currículo normal. A aprendizagem de factos sobre o mundo e o desenvolvimento da capacidade de tirar conclusões a partir desses factos não será necessária. Queremos preparar o vosso rapaz para a política. Para a política executiva, entenda-se, não para a teórica. Não temos interesse nenhum nas minorias políticas, porque nunca será através delas que conseguiremos acesso ao núcleo do poder. Apontamos ao centro, à maioria, e para lá chegarmos o vosso filho é quase ideal.
Enquanto Miguel e Conceição se recostavam nas cadeiras, embasbacados e chocados, a velha voltou a falar.
— Sabemos que não era a carreira que sonhavam para o vosso rapaz, estamos cientes de que é provável que estejam a pensar na vergonha que sentirão quando tiverem de dizer aos vossos familiares e amigos o que o Zé fará na vida, mas julgamos que ele será feliz assim. Tem mesmo a personalidade certa. Independentemente de tudo o resto, a função da escola é também promover a felicidade das crianças, não é verdade?
O casal ficou calado, a tentar digerir aquilo. A velha não.
— Então, que nos dizem? — pressionou passado pouco tempo. — Aceitam?
Ainda levaram algum tempo a pensar mas acabaram por aceitar. Claro. Afinal de contas, quem sai aos seus não degenera.
Ou algo assim.

1 comentário:

  1. Mais interessante que o anterior, sem dúvida.
    Acho que algumas informações sobre a tecnologia da altura ficaram "a mais", não eram necessárias.
    E claro, é impossível não notar a crítica velada.
    Gostei :)

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