por G. B. Nunes
Quando o Sol
roça enfim a linha ténue do horizonte, a areia começa a descansar. Para trás vão
ficando longas horas de esmagamento sob o calor tórrido de corpos, de
remeximento pelo deambular frenético de pés, de andares, de corridas, de jogos
e passeios. Ainda se vê gente na praia, os últimos retardatários, mas a babuja
está agora entregue a gaivotas e a pulgas-de-areia que aproveitam a maré baixa
para sair das tocas. Um pouco mais acima a areia cobre-se com uma faixa
entrecortada de algas secas, trazidas pelas marés-vivas da véspera e ainda não
apanhadas por ninguém. O mar continua revolto, desfazendo-se em espuma que vai
escurecendo com o recuo da luz, mas para a areia o estrondo solitário da
rebentação é uma mudança bem-vinda do coro de gritos e gargalhadas de horas
antes. Estes ainda se ouvem, mas mais rarefeitos, em ecos longínquos que ricocheteiam
na falésia. Vêm dos restaurantes que a debruam e derramam luzes frias sobre
círculos cada vez mais isolados de praia.
Quando o céu
finalmente se reduz à luz frágil das estrelas só uma Lua finíssima permanece a
arrancar reflexos ao mar. Em noites de calmaria, pescadores estariam na água,
marcando com o ondular das candeias a sua periferia. Mas o mar está bravo, o
vento sopra fresco, embora quente, e os pescadores permaneceram em terra,
olhando de longe o espumejar das ondas, ou recolhidos às casas, aproveitando a
folga para pôr em dia a família. A areia, quase negra onde a luz dos
restaurantes não chega, ondula como se de um mar se tratasse. Ninguém repara,
mas se reparasse não estranharia. É o vento, pensariam, o sueste avança, amanhã
de manhã a praia terá apagadas as pegadas de hoje e estará transformada num
deserto de pequenas dunas.
Passam-se as
horas. Nos restaurantes, uns clientes chegam e outros partem. Em alguns soa
música que parte a vogar praia fora, misturando-se em surdinas entrecruzadas. Outras
músicas vêm do topo das falésias, onde os bares e as discotecas arrancam para
mais uma noite de encontros e desencontros. Morcegos voluteiam na periferia das
lâmpadas, caçando insetos atraídos pelas luzes. Mais acima, bandos de gaivotas
voam aos gritos, de regresso aos poleiros onde passam as noites. E em baixo a
areia remexe-se, esculpindo formas invisíveis, baixos-relevos que tão depressa
surgem como desaparecem, perturbando o sono das pulgas-de-areia.
À medida que a
noite avança vai lentamente mudando a sua natureza. Vai-se tornando mais rouca,
mais estremecida em arrepios de um friozinho que não corta mas franze a pele
exposta dos braços e dos ombros das raparigas, apesar de o álcool e os troncos
musculosos dos rapazes as deixarem destemidas. Em baixo, sobre a areia, vão-se
desligando as luzes dos restaurantes, uma a uma. As últimas gargalhadas ressoam
na falésia, os últimos passos afastam-se pelo passadiço de tábuas. Não tarda
até a praia ficar realmente deserta, mas em breve esse abandono será de novo
interrompido, agora por casais que descem à escuridão da areia, impregnando-a
de amores furtivos. Onde antes ressoavam gritos esvoaçam agora suspiros e o
estilhaçar húmido de beijos.
A areia
aguarda. Sempre que alguém se aproxima aquieta-se numa inanimação esfíngica.
Mas quando os passos se afastam murmura canções de portos longínquos,
disfarçadas pelo rumor cada vez mais sonoro do mar que vai subindo. Os
baixos-relevos vão-se tornando menos efémeros, e também menos baixos. Um deles começa
a destacar-se, precisamente a meio da praia: um rosto de mulher, de olhos
fechados e pequeno narizinho arrebitado que se luz houvesse derramaria sombra
sobre um ténue sorriso. Ninguém o vê. Ninguém o sente. Pouca gente olha agora o
negrume da praia, e os que o fazem deixam-se ofuscar pelas luzes das ruas e dos
bares empoleirados na falésia e pela pálida espuma que cobre o mar. E mesmo
esses são cada vez menos, agora que o cansaço começa a instalar-se nas
multidões dançarinas e os grupos se vão desfazendo, uns bêbados, outros
sóbrios, uns pasmados, outros sôfregos, uns perdidos no entorpecimento das
drogas, outros neles reencontrados.
Até que chega
um momento em que já não há ninguém por ali. Tudo o que é humano se acoitou
para o que resta da noite, ou está tão entorpecido que não tem relevância.
Talvez por isso o rosto de mulher ergue-se mais da areia, escorrendo longos
cabelos de algas, como quem sai do mar. Surge uma mão de areia à superfície, e
logo outra, e ambas alisam para trás as algas ao mesmo tempo que ombros redondos
e lisos se formam, logo seguidos por pequenos seios, também redondos e lisos.
Está nua, a mulher de areia, e isso não a perturba, apesar do vento que sopra
agora em rajadas que fazem saltar pequenos grãos da areia de que é feita,
enrugando-lhe aquela espécie de pele num arremedo de arrepios. A mulher abre
então os olhos e percorre com eles todos os horizontes que a rodeiam, como se
fosse dia luminoso e conseguisse ver cada um dos pormenores que os compõem. E
talvez consiga; quem sabe que capacidades nunca vistas terão as mulheres de
areia?
Quando o
último pé se desprende da praia, a mulher de areia salta, feliz, num movimento
leve de graça. Algo sussurra numa espécie de gargalhada, mas talvez seja só
impressão, um efeito de vento, um eco de qualquer coisa longínqua de natureza
bem diversa. A mulher, essa, corre, brinca com as ondas que continuam a
rebentar furiosas, cobrindo com a espuma que trazem uma extensão cada vez mais
vasta de areal. Aproxima-se do mar quando este recua, como que o provoca,
desafiando-o a atingi-la, e quando a onda chega foge, lesta, enfunada pelo
vento.
Entretanto, na
areia, outras formas se vão esculpindo, diáfanas e breves como dentes-de-leão.
Monstros, sereias, paisagens e planetas, homens e mulheres e crianças, animais
de todos os feitios e todos os tipos de outras coisas. No centro de tudo, um
livro, que ao contrário de tudo o resto não se evapora como névoa assim que
fica formado, antes se define melhor, se solidifica numa lombada bem desenhada
e curva, como as dos tomos de capa dura, e numa sugestão de páginas às
centenas. Levíssimos traços criam-lhe relevos no frontispício. Houvesse luz e
talvez se vissem letras, um título, o nome de um autor, quiçá algo de gráfico a
enquadrá-los. Mas para a rapariga de areia, que agora se aproxima, é como se a
noite de breu estivesse iluminada com a luz violenta de um dia claro de estio.
Olha-o, deliciada, e aperta as mãos ao lado da cara. Depois pega no livro de
areia, cheia de cuidados, fazendo chover uma saraivada de micrométricas
pedrinhas e fragmentos de carapaças. Faz um gesto de boca como quem sopra,
embora nenhum vento lhe saia do corpo mas, mesmo assim, do livro saltam grãos
de areia como se fossem pó. A rapariga olha em volta, depois vai sentar-se
acima da linha da maré, no casco lascado de uma velha canoa de fibra de vidro.
Junta muito bem os joelhos e abre sobre eles o livro, devagar.
E ali fica muito
tempo, absorvida, numa imobilidade só interrompida pelo virar das finíssimas
páginas de areia, enquanto à sua volta as imagens que vai lendo se formam na
praia; paisagens longínquas, animais fantásticos, casais de sonho enlaçados à
luz das estrelas. O vento sopra-lhe as algas do cabelo, fazendo-as adejar como
bandeiras, mas ela nem nota. Só tem olhos para o que lê no profundo negrume da
noite, só tem espírito para o que vê à luz puríssima do livro, uma estátua
quase inanimada, mas transbordante de vida.
Mas eis que a
oriente a luz começa a regressar ao mundo. O vento aquieta-se, como que
expectante. Surgem os primeiros sinais de silhuetas. Da cidade, atrás da
falésia, começam a chegar rumores de movimento. Um homem aparece a uma das
pontas da praia, sacola a tiracolo, cana de pesca atirada sobre o ombro, balde
numa mão, um longo bocejo a brotar dos lábios. Nem o homem repara na rapariga de
areia, nem esta se distrai do fascínio do livro. A maré, quase cheia, já vai
vazando, mas as ondas estão mais calmas que horas antes, o ruído que fazem é
menos intenso. O homem pousa o balde, remexe lá dentro, isca o anzol, lança a
linha, espeta a cana na areia e instala-se para aguardar. Outro bocejo o
acomete, este mais ruidoso. A rapariga ouve-o. Ergue o olhar, sobressaltada,
deixando escorregar o livro de cima dos joelhos. Este tomba, desfazendo-se em
mil grãozinhos. Num segundo é um livro, completo com páginas, capa e lombada e
tudo, no seguinte não passa de um monte cónico de areia, e no seguinte nem isso
resta, o monte desaparece, os grãos esgueiram-se para todos os lados, como
caranguejos assustados pelo surgimento súbito de um bando de gaivotas, e vão
fundir-se com a praia. A rapariga está agora de pé, olhando na direção do
pescador que ali surgira sem que desse por isso. Os seios ondulam-lhe no peito
nu como se estivesse ofegante de susto. Leva a mão em pala à testa, como se a
ténue luz que se vai insinuando de oriente a ofuscasse e não a deixasse ver bem
o que a perturba. Semicerra os olhos de areia.
Quando desfaz
o bocejo e fecha a boca, o homem esfrega os olhos, pesados de sono. Depois
abre-os. Sem saber porquê, vira-os na direção da rapariga de areia. Nada vê,
além de leves silhuetas de rochedos, prédios e falésias. Mas mantém-nos fixos, prisioneiro
de uma estranha relutância em afastar o olhar.
Olham-se nos
olhos durante um longo, longo momento, o pescador e a rapariga de areia, sem se
verem, sem mesmo saberem ao certo quem ali está, ou sequer se está ali alguém.
Mas o feitiço
quebra-se, como sempre se quebram os feitiços. Como o livro antes dela, a
rapariga desfaz-se em praia. E o homem abana a cabeça de si para si, com vagos
pensamentos na cabeça sobre nem sabe bem o quê.
Em breve, a
praia estará de novo cheia de verão. O pescador, talvez com uma dourada ou um pequeno
sargo no balde, já terá regressado a casa, contente consigo próprio e esquecido
de tudo o que não seria capaz de enquadrar na sua experiência quotidiana. E,
por baixo dos corpos dos veraneantes, a rapariga jazerá estilhaçada em milhões
de fragmentos, adormecida, de novo sonhando os seus sonhos de areia.
E o livro,
esse, estará atento, à espreita, pronto a recolhê-los.
Fantástica escrita!
ResponderEliminarObrigada