por Afonso Luiz Pereira
O caboclo
Bentinho era homem de coragem. Ah, era sim. Não havia vivente neste mundão de
meu Deus que botasse dúvida de sua macheza na frente das fuças dele, não
senhor. E matador também! Sim, muito matador ele era, pois não se metia em
encrenca braba com a qual o cabra da peste não resolvesse na ponta da faca. Nas
suas costas já se botava por riba uma boa dezena de desafetos, que ele tinha
mandado desta pra melhor. A fama do homem corria longe. Muito além das terras
que faziam fronteira com a pequena cidade de Juazeiro, onde ele morava,
contavam-se os causos de sua valentia. Era assim o caboclo Bentinho: não tinha
medo nem de homem nem de bicho e, dizia-se inté, tampouco de assombração!
Bentinho e o
folclore em torno de sua figura só tinham rival em outro sertanejo de igual
fama conhecido como “Tonhão dos Espíritos”. Deste, então, pouco se sabia, a não
ser que tinha parte com o Sacripanta, o Capeta, o Coisa Ruim! Vivia isolado
numa casinha esturricada, feita de madeira velha e escura, sempre vestido de
paletó e calça marrom, surrados pela poeira acachapante dos ventos que
esmerilhavam os elementos naturais da caatinga. Mas não era Tonhão um capiau
qualquer, não senhor. Era homem versado nas letras dos cafundós dos infernos
porque a criatura falava com gente morta através dos papéis. Ô se isso lá era
coisa de gente certa!
Um dia, diz
que a mãe de Bentinho, de quem o marvado puxou a ruindade, bateu a caçoleta sem
aviso, de supetão, coisa de coração cansado que pede sossego pelo avanço da
idade. Da boca do povo corria o cochicho que a velha já ia tarde. Ninguém
gostava dela porque a cobra coral carecia de freios na língua, falava mal de
todo mundo. Ela derriçava o cacete nos animais e nos empregados da fazenda
fácil, fácil, assim, sabe? Como quem joga lavagem pra porco. O baque da morte
da santa mãezinha pro coitado do Bentinho foi grande. Ah, se foi. Ficou o homem
inconformado de um tal jeito que, mal o corpo da defunta tomou gosto dos bichos
da terra, veio ele ter comigo, antes da lua fazer assento naquela fatídica
noite cheia de acontecimentos sombrios, que ainda me acompanham por onde vou
neste sertão sem porteira.
— Vadico,
quero que vosmecê me leve inté no cafua do Tonhão dos Espríto.
— Oxênte homi!
Vosmecê tá de miolo mole, é? Abilolou de vez? Aquilo lá tem parte com o cão!
— Arre égua,
deixe de sê abestado, homi! E eu lá tenho medo de lidá com criatura bisonha
feito ele? Minha santa mãezinha finou-se num repente. Não deu tempo de nada,
visse? Não chegou a dá o último suspiro, a pobre coitada. É capaz que ela teja
percisada de alguma coisa lá do outro lado, né? Diz que o Tonhão é de falá com
quem bate a caçuleta. Pois então?
— Ô meu padim
padi Ciço! Lá vou não! Cruz credo!
— Deixe de sê
cagão homi. Diz que vosmecê é dos pouco que conhece o caminho inté lá. Se
vosmecê não vai, vosmecê tá me fazendo uma desfeita. E homi, mesmo sendo amigo
meu, quem me faz uma desfeita eu deito a faca no gorgomio sem dó nem piedade.
Pois, então,
foi assim que Bentinho me deu o convencimento de ir ele mais eu, cada qual encarrapitado
no seu jegue pachorrento, pras profundas da caatinga, em noite escura que nem
carvão. Bom... lá, depois de umas tantas horas, já de destino certo e
enveredando por trilhas e atalhos, num sobe e desce da cachorra, calhou a gente
de ver ao longe a morada do malacabado, filho do Tinhoso. A luz tremelicante de
vela a mercê do vento, que se escapava das gretas das paredes pregueadas do
casebre, batia nos olhos da gente como uma parecença de farol maligno dentro do
negrume da noite. Eita visão dos infernos! A vontade que me deu era carcá dali
rapidinho, feito calango que foge de caboclo morto de fome. Olhei pra peixeira
escorrida ao lado do Bentinho e desisti do pensamento.
Mal invadimos
a mangueira do casebre sombrio, Bentinho não contou passo. Desmontou do seu
jumento raquítico e mandou pernas na direção da porta de entrada do cafua do
Tonhão. Não chamou o vivente pelo nome, tampouco bateu palmas pra se fazer
anunciar. Empurrou a entrada do batente e mergulhou lá dentro, emproado, que
nem galo velho quando faz presença pra galinha nova. E eu, na cola dele, fui
junto, não com a mesma empáfia porque sou criatura de paz, temente ao nosso
senhor Jesus Cristo!
Lá estava o
Tonhão bem do aboletado atrás da velha mesa de carvalho.
Cruz credo! Não
conhecia o cabra de presença porque dele só ouvira falar estórias. E, de fato,
como se dizia nas conversas, o homem mais parecia um cão chupando manga de tão
feio. O ambiente funesto do cômodo escuro, a vela de chama tremeluzente próxima
dele, mais as folhas de papéis em desalinho por todos os lados, não lhe faziam
melhor a figura. De começo, após nossa entrada de supetão, ele não nos deu
atenção, ou fez que não viu, não sei dizer. Bentinho tomou aquilo como uma
afronta. O porquêra simplesmente pigarreou, forçando o barulho de engasgamento
de quem puxa catarro pra limpar o gorgomio e cuspiu no chão de madeira tosca da
sala. Os olhos negros da cara amassada e empalamada de Tonhão, estando de pouso
nos papéis por cima da mesa, tomaram prumo e buscaram nossa direção. Só da
mirada que o caboclo me deu veio um sopro de frio forte que me arrepiou todo o
corpo, dos pés à cabeça! Bentinho não tomou tento de apresentar-se, foi logo
intimando:
— Tonhão, comi
muita poeira nestas estradas pra mode de vosmecê me dizê cumé que tá a minha
santa mãezinha, que bateu a caçoleta não faz nem cinco dias. Quero sabê se a
pobre tá percisada de alguma coisa.
A vosmecê que
me ouve, não sei direito como explicar o acontecido. Tenho pra mim que Tonhão
já devia de tá de conluio com o Sacripanta, em meio d'algum tipo de ritual,
porque assim que Bentinho deu intimação, ele começou a rabiscar a folha de
papel num apressamento desembestado, os olhos se fugiram pra não sei d'onde e,
por pouco, não me borrei nas calças, quando ouvi a voz espremida e roufenha da
velha Antonha, mãe de Bentinho, saindo da boca da criatura molambenta!
— Fio... meu
fio... Bentinho... meu menino... Eu já tava te esperando. Tô nas profunda dos
inferno e não tô gostando nadica de nada desse diacho de lugar. Vosmecê tem que
me tirá daqui, meu fio.
— Oxênte, mas
como mãezinha?
— Meu fio, meu
menino, já fiz um “combinado” aqui com o Belzebu, só que vosmecê tem que me
ajudá!
Naquele exato
momento, Tonhão dos Espíritos começou a se estrebuchar. Vixe Maria, mãe do céu!
O homem ficou feio! As mãos que bolinavam o papel pareciam querer abandonar o
serviço da escrita exigido pelo Capeta. Deu dentro das minhas ideias, assim, no
meu jeito de pensar, que o traquinas malacabado tava num esforço pra mode de se
livrar do encosto maligno... mas não tava conseguindo, não. Daí, vosmecê,
caboclo atencioso nessa minha contação do fato assucedido, vai botá dúvida no
que vou te contar agora. Mas te adianto que não sou cabra dado a mentiras e nem
invencionices, não. Pode acreditar. Por riba da cabeça do Tonhão começou a se
formar uma nuvem empanturrada, meio escurecente, tal qual se assucede no começo das tempestades brabas, quando, no raro, desabam por
aqui. E dentro da sala, veja vosmecê! É isso mesmo. Uma nuvem dentro da
sala, homem do céu! Vosmecê acredita nisso? Mas espere que o pior mesmo vem por
aí. De dentro da nuvem começou a aparecer um mundaréu de criaturas medonhas que,
decerto, vinham das profundas. Um arrepio me cutucou forte a espinha de baixo
pra cima, que nem choque elétrico.
Nossa Senhora
dos Desvalidos, Tonhão tinha aberto a porteira dos infernos!
As criaturas
bisonhas se misturavam as carnes, ou estavam ligadas umas nas outras: homens,
mulheres, morcegos, esqueletos humanos, bichos que não dei conta de atinar.
Todos mal formados. Um por riba do outro, o outro por riba de um. Olha, era uma
misturança que fazia inté mal pros olhos do vivente. Nunca vi daquilo, nem em
pesadelo, se vosmecê quer saber. E no meio daquele mafuá das profundas, entre almas
e demônios, num é que apareceu as fuças da velha Antonha, estampada no bucho do
Bode Preto? Vixe Maria, mãe do céu! Foi nessa hora que, por pouco, quase arriei
os intestinos ali mesmo. Quis me escafeder dentro do pretume da noite, mas meus
gambitos fizeram birra! De lá de riba a cobra coral mandou recado pra Bentinho
botando minhoca na cachola dele.
— Meu fio, o
Belzebu me aprometeu que se vosmecê sangrá, esfolá, matá de morte bem matada,
pra mais de 30 cabras, ele vai me adevolvê pra vida de novo. Olhe só, meu fio.
O gramuião me faz vivê de novo! Ele bota minha alma no corpo outra vez!
— Mãezinha, a
senhora tem certeza?
— Oxênte, se
não tenho! E tem de sê pra ontem, meu fio. Pode começá com o Tonhão aí, esse
fio d’uma égua parideira, que não tá fazendo gosto d'eu proseá com vosmecê,
fio. Mata ele! Mata! Cutuca a peixeira velha no bucho desse empalamado. Mata
ele!
Não deu tempo
de nada. Foi como o pensamento. Bentinho, esporeado que nem galo de briga,
correu com a peixeira na mão mergulhando por riba da mesa e, num corte de
banda, sangrou o gorgomio do Tonhão dos Espíritos, que emborcou de cabeça,
virado de pernas pro ar, o desinfeliz. Bentinho não parou o serviço encomendado,
não. O sangue velho espirrou pra tudo quanto foi canto. Eu vi. Vi sim. Vi com
os olhos que esta terra há de comer. Enquanto Bentinho golpeava o corpo
estrebuchado do outro estatelado no chão, lá de riba, dentro da nuvem, as
criaturas dos infernos se agitavam, parecendo um amontoado de cobras ao redor
do Tinhoso, que levava a cara da velha Antonha pregueada no bucho. Ela se ria
alto, feliz, feito passarinho preso que foge da gaiola, a maldita. E, de
repente, os olhos negros dela caíram por riba de mim. Ai, ai, meu Senhor Jesus
Cristo. Senti que a coisa ia ficar mais preta ainda. Um sorriso murcho da boca
chupada da velha me estremeceu o prumo e quase desmaiei.
— Bentinho,
meu fio. Esse aí já se foi. Larga dele. A alma já desencarnou e tá vindo pra
cá. Agora, pega aquele estrupício lá, ó. Vadico é fuxiquero! Estripa esse
disgramado, fio d'uma porca, tumém!
Daí pra diante
pouca coisa posso dizer. Não sei o que foi que deu no meu amigo Bentinho, meu
compadre, meu parceiro de traquinagens da infância. Ele se levantou num pulo e
virou-se pra mim. Não disse palavra, mas os olhos dele diziam: vosmecê vai
morrer, cabra! Eu, que não sou bobo nem nada, não pedi explicação, não senhor!
Tomei o vão da porta escancarada pra noite e deitei cabelo pra fora do casebre
do Tonhão. Deixei o meu jegue na mangueira e “garrei” o mato da caatinga sem
olhar pra trás. Enquanto corria desesperado, caindo e levantando, ainda podia
ouvir o riso da velha Antonha azucrinando os meus ouvidos.
Ninguém, que
sobreviveu àquela noite, esquece da tragédia. Não se comenta, mas ninguém
esquece. Corri até à cidade. Fiz o maior barulhão que já se tinha visto na
história daquele povo. Eu berrava alucinado nas ruas empoeiradas de Juazeiro,
que Bentinho vinha estripá gente de bem pra resgatar a velha Antonha dos
infernos. Muitos fugiram, outros não acreditaram, no entanto, um grupo se armou
de facas e armas de fogo pra esperar o lazarento nos limites fronteiriços da
cidade. Foi assim que vimos o Bentinho, acompanhado da velha Antonha,
desenterrada, apodrecida e amarrada no meu jegue. Quando ele desmontou do seu
jumento estropiado, a faca rombuda e os olhos do cabra tomaram brilho dentro da
noite. Não fizemos muxoxo. Começamos a atirar. Os animais de carga, e a velha também,
desempacotaram-se no chão, mas Bentinho não! O homem tava de corpo fechado,
pelas graças do Capeta, de uma tal maneira que nem bala entrava na carcaça do
vivente! Ele berrou, correndo pra cima de nóis. Eita que foi um Deus nos acuda,
um desespero sem tamanho. Era gente espalhada correndo pra tudo quanto era
canto. Quem corresse mais, chorava menos, porque Bentinho ia passando a faca em
todo mundo. Era no pescoço, nas costas, nos braços, nas pernas... vixe, foi uma
gritaria que se ouviu de longe. Na confusão, o caboclo que Bentinho não lanhava
uma boa ferida pro resto da vida, morria estrebuchado, segurando as tripas no
meio da caatinga. Olha esta cicatriz aqui nas minhas fuças. Não nasci zarolho,
não. Foi ele quem fez.
Bem... vou dar
o causo por terminado porque não tenho mais o que dizer. Esta estória que eu te
contei já vai há muito, sabe? Jamais voltei a botar os pés lá pras bandas de
Juazeiro, mas estou bem informado do que acontece naquele eitão de terra. É
verdade. O Belzebu, o Demo, o Coisa Ruim, o Bode Preto, faz questão de me
deixar inteirado a quantas anda o combinado dele com a cobra coral. Em algumas
noites, escuras que nem carvão, me bate um encosto maligno, fico em transe,
assustando os meus amigos, meus filhos e parentes. Nestas horas, sou tomado
pelo sentimento de desespero de alguém, vítima de Bentinho, que não conhecendo
a região acaba estripado e abandonado pra morrer sozinho dentro da noite, em
meio à caatinga. Então, vejo claramente pelos olhos do agonizado, esvaindo-se
em sangue, o casebre isolado; e lá no vão da porta, alumiada pelas velas
tremeluzentes, alcanço com a vista boa, escorada no batente, a figura
apodrecida da velha Antonha sorrindo seu sorriso murcho e me dizendo:
— Falta pouco,
Vadico! Falta pouco!
Sem comentários:
Enviar um comentário