quarta-feira, 1 de agosto de 2012

O Pacto Macabro da Velha Antonha


por Afonso Luiz Pereira

NE: Este conto está escrito em dialeto nordestino. Temos algumas palavras e expressões mais específicas desse dialeto hiperligadas para que o leitor interessado possa consultar o seu significado. Deixando pairar o ponteiro do rato sobre elas, obterá uma explicação rápida; clicando será enviado para o Priberam ou a Wikipédia.


O caboclo Bentinho era homem de coragem. Ah, era sim. Não havia vivente neste mundão de meu Deus que botasse dúvida de sua macheza na frente das fuças dele, não senhor. E matador também! Sim, muito matador ele era, pois não se metia em encrenca braba com a qual o cabra da peste não resolvesse na ponta da faca. Nas suas costas já se botava por riba uma boa dezena de desafetos, que ele tinha mandado desta pra melhor. A fama do homem corria longe. Muito além das terras que faziam fronteira com a pequena cidade de Juazeiro, onde ele morava, contavam-se os causos de sua valentia. Era assim o caboclo Bentinho: não tinha medo nem de homem nem de bicho e, dizia-se inté, tampouco de assombração!

Bentinho e o folclore em torno de sua figura só tinham rival em outro sertanejo de igual fama conhecido como “Tonhão dos Espíritos”. Deste, então, pouco se sabia, a não ser que tinha parte com o Sacripanta, o Capeta, o Coisa Ruim! Vivia isolado numa casinha esturricada, feita de madeira velha e escura, sempre vestido de paletó e calça marrom, surrados pela poeira acachapante dos ventos que esmerilhavam os elementos naturais da caatinga. Mas não era Tonhão um capiau qualquer, não senhor. Era homem versado nas letras dos cafundós dos infernos porque a criatura falava com gente morta através dos papéis. Ô se isso lá era coisa de gente certa!
Um dia, diz que a mãe de Bentinho, de quem o marvado puxou a ruindade, bateu a caçoleta sem aviso, de supetão, coisa de coração cansado que pede sossego pelo avanço da idade. Da boca do povo corria o cochicho que a velha já ia tarde. Ninguém gostava dela porque a cobra coral carecia de freios na língua, falava mal de todo mundo. Ela derriçava o cacete nos animais e nos empregados da fazenda fácil, fácil, assim, sabe? Como quem joga lavagem pra porco. O baque da morte da santa mãezinha pro coitado do Bentinho foi grande. Ah, se foi. Ficou o homem inconformado de um tal jeito que, mal o corpo da defunta tomou gosto dos bichos da terra, veio ele ter comigo, antes da lua fazer assento naquela fatídica noite cheia de acontecimentos sombrios, que ainda me acompanham por onde vou neste sertão sem porteira.
— Vadico, quero que vosmecê me leve inté no cafua do Tonhão dos Espríto.
— Oxênte homi! Vosmecê tá de miolo mole, é? Abilolou de vez? Aquilo lá tem parte com o cão!
— Arre égua, deixe de sê abestado, homi! E eu lá tenho medo de lidá com criatura bisonha feito ele? Minha santa mãezinha finou-se num repente. Não deu tempo de nada, visse? Não chegou a dá o último suspiro, a pobre coitada. É capaz que ela teja percisada de alguma coisa lá do outro lado, né? Diz que o Tonhão é de falá com quem bate a caçuleta. Pois então?
— Ô meu padim padi Ciço! Lá vou não! Cruz credo!
— Deixe de sê cagão homi. Diz que vosmecê é dos pouco que conhece o caminho inté lá. Se vosmecê não vai, vosmecê tá me fazendo uma desfeita. E homi, mesmo sendo amigo meu, quem me faz uma desfeita eu deito a faca no gorgomio sem dó nem piedade.
Pois, então, foi assim que Bentinho me deu o convencimento de ir ele mais eu, cada qual encarrapitado no seu jegue pachorrento, pras profundas da caatinga, em noite escura que nem carvão. Bom... lá, depois de umas tantas horas, já de destino certo e enveredando por trilhas e atalhos, num sobe e desce da cachorra, calhou a gente de ver ao longe a morada do malacabado, filho do Tinhoso. A luz tremelicante de vela a mercê do vento, que se escapava das gretas das paredes pregueadas do casebre, batia nos olhos da gente como uma parecença de farol maligno dentro do negrume da noite. Eita visão dos infernos! A vontade que me deu era carcá dali rapidinho, feito calango que foge de caboclo morto de fome. Olhei pra peixeira escorrida ao lado do Bentinho e desisti do pensamento.
Mal invadimos a mangueira do casebre sombrio, Bentinho não contou passo. Desmontou do seu jumento raquítico e mandou pernas na direção da porta de entrada do cafua do Tonhão. Não chamou o vivente pelo nome, tampouco bateu palmas pra se fazer anunciar. Empurrou a entrada do batente e mergulhou lá dentro, emproado, que nem galo velho quando faz presença pra galinha nova. E eu, na cola dele, fui junto, não com a mesma empáfia porque sou criatura de paz, temente ao nosso senhor Jesus Cristo!
Lá estava o Tonhão bem do aboletado atrás da velha mesa de carvalho.
Cruz credo! Não conhecia o cabra de presença porque dele só ouvira falar estórias. E, de fato, como se dizia nas conversas, o homem mais parecia um cão chupando manga de tão feio. O ambiente funesto do cômodo escuro, a vela de chama tremeluzente próxima dele, mais as folhas de papéis em desalinho por todos os lados, não lhe faziam melhor a figura. De começo, após nossa entrada de supetão, ele não nos deu atenção, ou fez que não viu, não sei dizer. Bentinho tomou aquilo como uma afronta. O porquêra simplesmente pigarreou, forçando o barulho de engasgamento de quem puxa catarro pra limpar o gorgomio e cuspiu no chão de madeira tosca da sala. Os olhos negros da cara amassada e empalamada de Tonhão, estando de pouso nos papéis por cima da mesa, tomaram prumo e buscaram nossa direção. Só da mirada que o caboclo me deu veio um sopro de frio forte que me arrepiou todo o corpo, dos pés à cabeça! Bentinho não tomou tento de apresentar-se, foi logo intimando:
— Tonhão, comi muita poeira nestas estradas pra mode de vosmecê me dizê cumé que tá a minha santa mãezinha, que bateu a caçoleta não faz nem cinco dias. Quero sabê se a pobre tá percisada de alguma coisa.

A vosmecê que me ouve, não sei direito como explicar o acontecido. Tenho pra mim que Tonhão já devia de tá de conluio com o Sacripanta, em meio d'algum tipo de ritual, porque assim que Bentinho deu intimação, ele começou a rabiscar a folha de papel num apressamento desembestado, os olhos se fugiram pra não sei d'onde e, por pouco, não me borrei nas calças, quando ouvi a voz espremida e roufenha da velha Antonha, mãe de Bentinho, saindo da boca da criatura molambenta!
— Fio... meu fio... Bentinho... meu menino... Eu já tava te esperando. Tô nas profunda dos inferno e não tô gostando nadica de nada desse diacho de lugar. Vosmecê tem que me tirá daqui, meu fio.
— Oxênte, mas como mãezinha?
— Meu fio, meu menino, já fiz um “combinado” aqui com o Belzebu, só que vosmecê tem que me ajudá!
Naquele exato momento, Tonhão dos Espíritos começou a se estrebuchar. Vixe Maria, mãe do céu! O homem ficou feio! As mãos que bolinavam o papel pareciam querer abandonar o serviço da escrita exigido pelo Capeta. Deu dentro das minhas ideias, assim, no meu jeito de pensar, que o traquinas malacabado tava num esforço pra mode de se livrar do encosto maligno... mas não tava conseguindo, não. Daí, vosmecê, caboclo atencioso nessa minha contação do fato assucedido, vai botá dúvida no que vou te contar agora. Mas te adianto que não sou cabra dado a mentiras e nem invencionices, não. Pode acreditar. Por riba da cabeça do Tonhão começou a se formar uma nuvem empanturrada, meio escurecente, tal qual se assucede no começo das tempestades brabas, quando, no raro, desabam por aqui. E dentro da sala, veja vosmecê! É isso mesmo. Uma nuvem dentro da sala, homem do céu! Vosmecê acredita nisso? Mas espere que o pior mesmo vem por aí. De dentro da nuvem começou a aparecer um mundaréu de criaturas medonhas que, decerto, vinham das profundas. Um arrepio me cutucou forte a espinha de baixo pra cima, que nem choque elétrico.
Nossa Senhora dos Desvalidos, Tonhão tinha aberto a porteira dos infernos!
As criaturas bisonhas se misturavam as carnes, ou estavam ligadas umas nas outras: homens, mulheres, morcegos, esqueletos humanos, bichos que não dei conta de atinar. Todos mal formados. Um por riba do outro, o outro por riba de um. Olha, era uma misturança que fazia inté mal pros olhos do vivente. Nunca vi daquilo, nem em pesadelo, se vosmecê quer saber. E no meio daquele mafuá das profundas, entre almas e demônios, num é que apareceu as fuças da velha Antonha, estampada no bucho do Bode Preto? Vixe Maria, mãe do céu! Foi nessa hora que, por pouco, quase arriei os intestinos ali mesmo. Quis me escafeder dentro do pretume da noite, mas meus gambitos fizeram birra! De lá de riba a cobra coral mandou recado pra Bentinho botando minhoca na cachola dele.
— Meu fio, o Belzebu me aprometeu que se vosmecê sangrá, esfolá, matá de morte bem matada, pra mais de 30 cabras, ele vai me adevolvê pra vida de novo. Olhe só, meu fio. O gramuião me faz vivê de novo! Ele bota minha alma no corpo outra vez!
— Mãezinha, a senhora tem certeza?
— Oxênte, se não tenho! E tem de sê pra ontem, meu fio. Pode começá com o Tonhão aí, esse fio d’uma égua parideira, que não tá fazendo gosto d'eu proseá com vosmecê, fio. Mata ele! Mata! Cutuca a peixeira velha no bucho desse empalamado. Mata ele!
Não deu tempo de nada. Foi como o pensamento. Bentinho, esporeado que nem galo de briga, correu com a peixeira na mão mergulhando por riba da mesa e, num corte de banda, sangrou o gorgomio do Tonhão dos Espíritos, que emborcou de cabeça, virado de pernas pro ar, o desinfeliz. Bentinho não parou o serviço encomendado, não. O sangue velho espirrou pra tudo quanto foi canto. Eu vi. Vi sim. Vi com os olhos que esta terra há de comer. Enquanto Bentinho golpeava o corpo estrebuchado do outro estatelado no chão, lá de riba, dentro da nuvem, as criaturas dos infernos se agitavam, parecendo um amontoado de cobras ao redor do Tinhoso, que levava a cara da velha Antonha pregueada no bucho. Ela se ria alto, feliz, feito passarinho preso que foge da gaiola, a maldita. E, de repente, os olhos negros dela caíram por riba de mim. Ai, ai, meu Senhor Jesus Cristo. Senti que a coisa ia ficar mais preta ainda. Um sorriso murcho da boca chupada da velha me estremeceu o prumo e quase desmaiei.
— Bentinho, meu fio. Esse aí já se foi. Larga dele. A alma já desencarnou e tá vindo pra cá. Agora, pega aquele estrupício lá, ó. Vadico é fuxiquero! Estripa esse disgramado, fio d'uma porca, tumém!
Daí pra diante pouca coisa posso dizer. Não sei o que foi que deu no meu amigo Bentinho, meu compadre, meu parceiro de traquinagens da infância. Ele se levantou num pulo e virou-se pra mim. Não disse palavra, mas os olhos dele diziam: vosmecê vai morrer, cabra! Eu, que não sou bobo nem nada, não pedi explicação, não senhor! Tomei o vão da porta escancarada pra noite e deitei cabelo pra fora do casebre do Tonhão. Deixei o meu jegue na mangueira e “garrei” o mato da caatinga sem olhar pra trás. Enquanto corria desesperado, caindo e levantando, ainda podia ouvir o riso da velha Antonha azucrinando os meus ouvidos.
Ninguém, que sobreviveu àquela noite, esquece da tragédia. Não se comenta, mas ninguém esquece. Corri até à cidade. Fiz o maior barulhão que já se tinha visto na história daquele povo. Eu berrava alucinado nas ruas empoeiradas de Juazeiro, que Bentinho vinha estripá gente de bem pra resgatar a velha Antonha dos infernos. Muitos fugiram, outros não acreditaram, no entanto, um grupo se armou de facas e armas de fogo pra esperar o lazarento nos limites fronteiriços da cidade. Foi assim que vimos o Bentinho, acompanhado da velha Antonha, desenterrada, apodrecida e amarrada no meu jegue. Quando ele desmontou do seu jumento estropiado, a faca rombuda e os olhos do cabra tomaram brilho dentro da noite. Não fizemos muxoxo. Começamos a atirar. Os animais de carga, e a velha também, desempacotaram-se no chão, mas Bentinho não! O homem tava de corpo fechado, pelas graças do Capeta, de uma tal maneira que nem bala entrava na carcaça do vivente! Ele berrou, correndo pra cima de nóis. Eita que foi um Deus nos acuda, um desespero sem tamanho. Era gente espalhada correndo pra tudo quanto era canto. Quem corresse mais, chorava menos, porque Bentinho ia passando a faca em todo mundo. Era no pescoço, nas costas, nos braços, nas pernas... vixe, foi uma gritaria que se ouviu de longe. Na confusão, o caboclo que Bentinho não lanhava uma boa ferida pro resto da vida, morria estrebuchado, segurando as tripas no meio da caatinga. Olha esta cicatriz aqui nas minhas fuças. Não nasci zarolho, não. Foi ele quem fez.
Bem... vou dar o causo por terminado porque não tenho mais o que dizer. Esta estória que eu te contei já vai há muito, sabe? Jamais voltei a botar os pés lá pras bandas de Juazeiro, mas estou bem informado do que acontece naquele eitão de terra. É verdade. O Belzebu, o Demo, o Coisa Ruim, o Bode Preto, faz questão de me deixar inteirado a quantas anda o combinado dele com a cobra coral. Em algumas noites, escuras que nem carvão, me bate um encosto maligno, fico em transe, assustando os meus amigos, meus filhos e parentes. Nestas horas, sou tomado pelo sentimento de desespero de alguém, vítima de Bentinho, que não conhecendo a região acaba estripado e abandonado pra morrer sozinho dentro da noite, em meio à caatinga. Então, vejo claramente pelos olhos do agonizado, esvaindo-se em sangue, o casebre isolado; e lá no vão da porta, alumiada pelas velas tremeluzentes, alcanço com a vista boa, escorada no batente, a figura apodrecida da velha Antonha sorrindo seu sorriso murcho e me dizendo:
— Falta pouco, Vadico! Falta pouco!

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